Braudel Paper Nº37 - Diadema (2002)
Democracia 3: Do “faroeste” para a vida civilizada na periferia de São Paulo
* Bruno Paes Manso • Maryluci de Araújo Faria • Norman Gall
** Esse ensaio sobre a redução de violência na periferia de São Paulo é produto de um trabalho de equipe que durou quatro anos, continuando uma série de Braudel Papers sobre o funcionamento da democracia na América Latina. Bruno Paes Manso realizou um estudo dos homicídios em Diadema como pesquisador do Instituto Fernand Braudel. Maryluci de Araújo Farias contribuiu para esse estudo como coordenadora dos projetos do Instituto em Diadema. Norman Gall é diretor executivo do Instituto e editor de Braudel Papers. Agradecemos o apoio do Banco Mundial e da Fundação Tinker na realização desse projeto.
No final dos anos 70, nas ruas de terra mal iluminadas do novo município de Diadema, as casas de alvenaria ainda se misturavam aos barracos de madeira, em um amontoado de vidas que começavam a se assentar. Eram tempos em que a periferia da Grande São Paulo vivia um intenso processo de construção e de desordem, depois da explosão de loteamentos clandestinos e de invasões que fizeram a população triplicar em apenas duas décadas. Nos novos bairros de Diadema, era preciso sair de casa com um par de sapatos reserva quando o dia amanhecia chuvoso, porque o que estivesse nos pés certamente ficaria imprestável. Mas a lama não era o pior no caminho para o ponto de ônibus.
Corpos crivados a bala ao longo do percurso não eram raridades. Além disso, listas macabras, mal escritas, apareciam nas entradas das duas padarias do bairro do Campanário, a Zoológico e a Solimões, indicando os nomes das pessoas marcadas para morrer nos próximos dias. As listas eram afixadas pelos justiceiros, homens que se proclamavam autoridades locais e matavam as pessoas que eles julgavam perturbar a ordem nestes bairros em formação. “A polícia nunca fazia nada quando via a lista”, disse uma antiga moradora. “Não se sabe se eles tinham medo ou se realmente estavam envolvidos. Quando encontravam um corpo pela manhã, os policiais o jogavam no camburão, como um porco”. Em 1990, os justiceiros mataram sete estudantes em uma praça pública do Campanário, perto das casas das vítimas. Várias pessoas presenciaram a matança, que nunca foi esclarecida.
Aprendizado e Cultura em Diadema
Diadema desenvolve uma mobilização cultural que se destaca entre as cidades da Grande São Paulo. Parte dessa vitalidade pode ser explicada pela história da formação da cidade e de suas políticas culturais, movidas pelos movimentos populares de esquerda que levaram ao nascimento do Partido dos Trabalhadores (PT) e que contaram com a solidariedade dos intelectuais e artistas paulistanos. Essa efervescência cultural teve um papel importante na formação de jovens que, em busca de cultura, conseguiram driblar com garra e criatividade o ambiente da violência, como mostram os depoimentos que seguem de cinco jovens do Projeto Círculos de Leitura, quatro deles hoje educadores, todos moradores de Diadema, que se destacam por suas lutas individuais para adquirir cultura.
A cidade desenvolveu uma rede de artistas, centros culturais e bibliotecas de bairro ao longo das últimas duas décadas. Em 1989 Diadema ganhou o primeiro centro cultural de bairro, no convulsionado Jardim Campanário, sob a gestão petista de José Augusto da Silva Ramos (1989-92).
Até então, a cidade contava apenas com o Centro Cultural Diadema (CCD), criado em 1982 na região central. Em 1992, a Prefeitura inaugurou Centros Juvenis de Cultura (CJC) em cada comunidade, na tentativa de suprir a ausência de espaços de lazer para a população crescente de crianças e jovens. Mas os CJCs careciam de uma programação consistente, faltando recursos e supervisão. Nos três anos seguintes, o novo diretor do Departamento de Cultura, Elmir de Almeida, dirigiu os primeiros recursos para seleção e treinamento de pessoal e estruturou os CJCs para que se tornassem centros culturais de bairro. A Prefeitura anuncia vagas para jovens em oficinas de teatro, música, literatura, histórias em quadrinhos, artes plásticas, fotografia, artes circenses e dança. Essas oficinas são de qualidade variável, mas oferecem aos jovens seu primeiro contato com a cultura. Nossos educadores contam aqui suas experiências:
Reni Adriano Batista, 23, nasceu na zona rural de Minas Gerais e chegou com os pais e a irmã em Diadema em janeiro de 1990, aos nove anos de idade.
“Logo no início, tive o choque cultural em constatar que a São Paulo onde vim morar não era uma Avenida Paulista, mas uma favela com ruas sem asfalto, saneamento precário e muito desemprego. Descobri que era possível ser mais pobre do que eu fora em Minas Gerais. Talvez na minha terra natal eu nem soubesse o que era ser pobre, uma vez que, se éramos, todos o eram e a própria cultura nos acolhia numa relação de intensa solidariedade.
Em uma escola estadual próxima à minha casa no bairro Serraria, onde crianças riam do meu sotaque mineiro e a professora primária ralhava para que eu falasse “direito”, fiz-me rebelde, apesar de ter boas notas em todas as matérias. Na terceira série do ensino fundamental, porque falava muito na sala, a professora passou a me confinar num depósito de livros velhos, impropriamente chamado de biblioteca. Tinha que ficar alí durante toda a aula, sozinho, copiando textos gigantescos. Percebendo que minhas cópias não eram lidas pela professora, passei a copiar os textos saltando vários parágrafos, para terminar depressa. Com o tempo que me restava, mexia nos livros. Descobri Monteiro Lobato. Li quase todos os seus livros infantis.
Morando em uma casa de um só cômodo, lia deitado no chão, aproveitando a luz do forno do fogão, para não incomodar os demais com a claridade. Meu pai, que não via valor na leitura, não me deixava ler perto dele: “Livro não enche barriga de ninguém”, dizia.
Descobri aos onze anos a Biblioteca Municipal do Serraria, recém-inaugurada, fruto de um processo de expansão das bibliotecas de bairro. Em 1997, a escola em que eu estudava, sem infra-estrutura para armazenar livros, recebeu do MEC centenas de exemplares. Distribuídos aleatoriamente em prateleiras, os livros se tornaram material para o vandalismo: alunos rasgavam-nos, chutavam, pisavam em cima, desfolhavam-nos no ventilador. Comecei a levar alguns livros para casa – ainda hoje tenho um Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, com uma marca de pé na primeira página. Assim também descobri as crônicas de Otto Lara Resende. Cursava então a sétima série à noite, o período mais precário para se estudar, mas queria ser como Otto. Nunca, antes, nem depois, desejei tanto ser um outro. Foi a primeira vez que pensei, mesmo sem recursos, em cursar uma faculdade: achava que fazer jornalismo bastava para ter a erudição de Otto.
Conforme crescia, aprendi, pela própria procura de novidades, a circular pela cidade e a me envolver nos espaços públicos, sobretudo em bibliotecas e na informalidade cultural da qual Diadema é muito rica: nas praças, nas ruas, nos bares, em casas de amigos.
Certa vez, aos 17 anos, numa madrugada, eu me encontrava na Praça da Moça – a principal praça de Diadema –, com alguns amigos, falando de poesia. Aproximou-se um homem de aproximadamente 30 anos, perguntando se tínhamos bebida. Tentamos nos esquivar a todo custo. O homem, a despeito da nossa indiferença para com ele, deitou-se ali próximo. Inesperadamente, se dirigiu a mim e perguntou: “Você já ouviu falar em Oscar Wilde?”. Disse não, desconcertado. Ele: “Então procura na biblioteca de Diadema, lá com certeza tem; leia O Retrato de Dorian Gray”. Soube assim não só da importância desse clássico como da história do seu autor através daquele estranho, na verdade um grande escritor da cidade, que anos mais tarde se tornaria um amigo.
Em 1999, entrei no CEFAM Diadema, uma extinta escola de magistério, menos por vocação pedagógica do que por aperto financeiro: os estudantes ganhavam uma bolsa mensal de um salário mínimo, em período integral. Além disso, eu tinha esperança de cursar um ensino médio de melhor qualidade. A partir de então, eu teria bases mais sólidas para minha formação: em parte pelo apoio de bons professores, mas sobretudo pelos alunos inteligentes que o CEFAM atraia.
Trocávamos informações sobre leituras diversas e nos indicávamos livros mutuamente. Assim se formou, naturalmente, um grupo de discussão pelos intervalos e nas aulas vagas. Clarice Lispector, Machado de Assis, Fernando Pessoa, José Saramago, Herman Hesse, Samuel Becket, entre outros, eram referências básicas para quem quisesse se aproximar do grupo. Além dos literatos, havia também os filósofos, que discutíamos exaustivamente, sem muito rigor filosófico, mas com profundidade. Sartre, Camus e Nietzsche eram os favoritos. Estava formada, então, uma rede de distribuição de saber por todo o CEFAM, às vezes em protesto à própria instituição. E a rede se estendia pelo centro de Diadema, uma vez que todos os integrantes do grupo (batizado de “Ismo”) desenvolviam alguma atividade pelos centros culturais e viviam pelas praças, lendo e discutindo.
Com a chamada Lei Seca, às vezes os amigos se vêem pelos bares até o horário permitido, depois saem da cidade. Às vezes nos reunimos na casa de alguém, mas não é sempre: há um distanciamento gigantesco entre o que é lazer para nós e nossas famílias. E o espaço de nossas casas, geralmente muito pequenas, não conciliam tanta diferença de comportamento. Opções fora da cidade muitas vezes se tornam inviáveis, pela falta de dinheiro. Malgrado todas as dificuldades, poucas pessoas conseguem se divertir tanto e se informar com tão pouco dinheiro. Foi no final de 2001 que conheci o projeto Círculos de Leitura. Lendo A Odisséia com Catalina Pagés Lamas, fundadora do método, descobri que era possível articular coisas práticas com o encantamento suscitado pelos livros. Oportunidade semelhante é o que desejam jovens e adolescentes ambiciosos que se sentem amorfos, perdidos na maioria das escolas, que não zelam pelas diferenças e, incapazes de formar talentos, tentam reduzi-los a uma massa medíocre.
Vanessa Almeida, 21, nasceu em Diadema, filha de imigrantes nordestinos.
Meu primeiro contato com a leitura foi aos oito anos, quando eu cursava o segundo ano primário. A escola em que eu estudava possuía uma pequena biblioteca, onde os alunos podiam pegar livros emprestados. Assim começou meu gosto pela leitura. Minha mãe, percebendo o meu interesse, presenteava-me com exemplares infanto-juvenis de diversos autores.
A primeira vez que visitei o Centro Cultural Diadema (CCD) foi aos 11 anos, quando a escola em que eu estudava promoveu um passeio até lá. Assisti à minha primeira peça teatral. Essa visita serviu de estímulo para que eu começasse a frequentar o Teatro Clara Nunes. Como a Biblioteca Central fica no mesmo prédio, cadastrei-me para emprestar livros. Lá também fazia minhas pesquisas escolares.
Em 1999, meu professor de Educação Artística pediu para cada uma das oitavas séries montarem um espetáculo teatral para ser apresentado na escola. O melhor seria selecionado para participar do Festival Interescolar no Teatro Clara Nunes. A peça que apresentamos, com texto de minha autoria, foi classificada. No final de setembro apresentamos no Teatro Clara Nunes a peça Apocalipse, que, para nossa surpresa, ganhou os prêmios de melhor maquiagem, figurino, destaque e melhor texto original. Nesse dia, decidi dedicar-me mais à leitura e à escrita. No ano seguinte, meu amigo Luis pediu-me para escrever um texto para seu trabalho de conclusão da oficina de direção teatral no CCD. Escrevi um monólogo em que atuei como atriz e que foi apresentado em três centros culturais da cidade, incluindo duas apresentações no Teatro Clara Nunes.
Foi no ano de 2001 que comecei a frequentar o Bar do Zé, na rua Graciosa, a poucos metros do CCD. Lá se reuniam agentes culturais, artistas plásticos, atores, oficineiros, escritores, professores, alunos e demais frequentadores dos centros culturais, trocando idéias e informações sobre todo tipo de arte. Conversando com essas pessoas descobri autores como Dostoievski, Hesíodo, García Márquez, Artaud. O bar cultivava um engajamento político de esquerda, o que me fez ler autores como Marx, Lênin, Trotski, Leo Huberman, Rosa Luxemburgo.
Também tive os primeiros contatos com as idéias de Freud e Jung. Livros com fotos de obras de artistas plásticos como Rodin, Picasso e Klimt circulavam entre os frequentadores, além de pessoas recitando poemas no microfone e vídeos de artistas como Elis Regina passando na televisão.
Em 2003, através da Oficina de Leitura Dramática do CCD, comecei a conhecer outros espaços culturais fora da cidade, como Centro Cultural São Paulo, Sesc Pompéia e Sesc Pinheiros, em passeios organizados para os alunos das oficinas. Mas, com uma queda drástica na qualidade das oficinas e o esfriamento da antiga efervescência cultural, meus amigos e eu acabamos ficando sem espaço para reunir e discutir nossas idéias. Após o fechamento dos bares às 23h, em decorrência da “Lei Seca” de 2003, ficamos na Praça da Moça e, ocasionalmente, vamos para casa de alguém, ou para outras cidades como São Paulo, São Bernardo e Santo André, quando temos dinheiro. Nas nossas casas nossos pais não concordam, pois olham com estranheza nosso comportamento, sempre lendo, sempre discutindo assuntos para eles ininteligíveis e inúteis. Mas, apesar das dificuldades, meus amigos e eu não desistimos de criar espaços onde possamos partilhar idéias.
Mônica Rodrigues, 26, atriz e diretora teatral, que trabalhou na montagem da peça Crime e Castigo, de Dostoievski, apresentada no Centro Cultural São Paulo.
Minha trajetória no teatro em Diadema começou em 1993, quando eu tinha 14 anos. Meu único contato com a arte se resumia às leituras de histórias na escola, como O Pequeno Príncipe, e apresentações anuais em academias de balé e festivais de dança. Estimulada por minha professora de balé, saí à procura de algum curso de teatro, e encontrei no saguão do Teatro Clara Nunes, um cartaz onde se lia “Teste para Atores”. Entrei no meu primeiro grupo de teatro, Filhos de Aquarius, dirigido por uma integrante da Cia. de Danças de Diadema. Com uma produção totalmente independente, nos apresentamos em Diadema e em várias regiões do ABC, além de Santos e Presidente Prudente. Mas, como todo grupo amador que se desestabiliza com a falta de apoio artístico e financeiro, encerramos nossas atividades dois anos depois.
Por sorte a Prefeitura de Diadema abriu inscrições para um grupo de teatro intermediário. Em agosto de 1995, foi criado o grupo Jovens Atores, somente com atores da cidade. Era a primeira vez que a Prefeitura assumia a manutenção financeira, ainda que parcial, de um grupo de teatro. Recebíamos aulas, de segunda a sexta-feira, de dramaturgia, voz, corpo, história do teatro e improvisação. Nosso primeiro espetáculo foi “Algumas Estórias”, baseado em três contos de Guimarães Rosa. Premiados nos festivais de Penápolis, Ourinhos e Bragança Paulista, nos apresentamos em todos os centros culturais da cidade, até 1996. O grupo passou a ser reconhecido por diferir das oficinas normais, que aliavam teatro com inclusão social, mas sem muita ambição artística. Com Histórias que o povo conta, um painel de histórias vividas por cada integrante do grupo, identificando características de Diadema e sua história, o grupo foi escolhido para representar a cidade no festival de teatro do Estado, o Mapa Cultural Paulista, obtendo duas premiações.
Em 1998, o Jovens Atores passou a ser considerada uma oficina de teatro avançada. Com novo diretor, encenamos a tragédia grega As Troianas. Foi o meu primeiro personagem protagonista, como Hécuba, rainha de Tróia, que me exigiu muita dedicação e estudo para conseguir dar o mínimo de realismo ao sofrimento profundo daquelas mulheres. Esta montagem me levou a ter uma visão mais séria com todo produto artístico e impulsionou minha capacidade crítica e de observação estética. Passei a ver ética e disciplina como coisas indissociáveis da arte.
Em novembro de 1999, a prefeitura decidiu dar um fim ao nosso grupo – justamente no seu ano de mais brilho. Apesar do choque, eu e outros integrantes do grupo não queríamos parar. Fazer teatro já era uma forma de sobrevivência, de luta, de protesto, e também nossa tentativa de encantar o mundo à nossa volta, exteriorizando nossos sonhos e poesia. Convidando amigos, alguns ex-integrantes dos Jovens Atores, e outros atores da cidade, montamos o grupo Tufo, cuja última montagem a partir de textos de Sartre, Fernando Pessoa e Henry David Thoreau foi levada aos centros culturais e escolas de Diadema.
De janeiro a setembro de 2001, a Prefeitura de Diadema realizou um seminário de cultura para discutir políticas culturais, sem a participação dos artistas e da população. Em protesto, e mesmo sem recursos básicos como um telefone, organizamos em janeiro de 2001 o primeiro Fórum Municipal de Cultura. Enquanto isso, outros movimentos foram ganhando espaço no município. O Centro Cultural Serraria passou a organizar uma Mostra Anual de Teatro do bairro, onde os artistas, moradores e funcionários até hoje discutem, pauta por pauta, a estrutura e o emprego das verbas destinadas. O Fórum Municipal de Cultura de Diadema tem participado mais na discussão das ações culturais do município. Conseguimos, junto à bancada petista dos vereadores na Câmara Municipal, a aprovação da Lei Plínio Marcos, que garante premiação para os artistas na Mostra Anual de Artes de Diadema. Em agosto de 2002, foi criado o Espaço Patrícia Galvão, uma iniciativa da Articulação de Esquerda, tendência interna do PT, em criar um espaço para discussão artística e política.
Em abril do mesmo ano, a Prefeitura de Diadema realizou em parceria com a prefeitura de Montreuil, França, um processo seletivo para premiar três jovens diademenses com vagas em universidades francesas. Depois o prefeito de Montreuil ofereceu cursos de francês e convidou os outros doze jovens finalistas a passar o mês de julho ou agosto de 2004 na França. Em agosto saí pela primeira vez de meu país e viajei para a França, cujas belezas e suas contradições me fizeram valorizar mais os ganhos que já temos conquistado em terra brasileira.
Carlos Henrique André, 21, escreve poemas e contos, trabalha como office-boy e sonha em cursar uma boa faculdade de serviço social.
Cresci no Jardim Santa Elizabeth, um bairro pobre de Diadema. Meu pai, alcoólatra, mas um bom pai, morreu ao cair na rua, quando eu tinha cinco anos. Minha mãe, paranaense, com muita coragem, trabalhou durante dez anos como faxineira do Hospital Público de Diadema, para manter as contas de casa, sempre fiel aos filhos. Ingressei no ensino municipal com cinco anos de idade e dois anos depois fui alfabetizado em uma escola no bairro Minha primeira experiência significativa de aprendizado ocorreu quando depois de ler minha redação minha professora da primeira série, Bete Afonso, elogiou-me e presenteou-me com um livro infanto-juvenil do qual fiz um extenso trabalho de interpretação extraclasse. Eu sempre gaguejei muito desde pequeno, mas as pessoas não riam e eram pacientes comigo.
A paixão pela leitura se tornou parte do meu dia-a-dia. Mesmo sem orientação, segui até a adolescência descobrindo obras que aguçavam minha curiosidade como Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes e Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Por volta de meus doze anos morei com minha mãe e meus irmãos mais novos numa ocupação do Movimento dos Sem Teto na Avenida Casa Grande, Diadema. A terra era de propriedade da empresa Paranoá, uma firma de autopeças que mais tarde me deu um emprego de office-boy quando completei um curso técnico. Éramos uma dessas famílias que viam na lama pisada, toda manhã, sua única possibilidade de ter uma moradia digna. Observando suas crianças brincando inócuas - escrevi meu primeiro poema, planejando transformá-lo em música. Oito meses depois as tropas de choque da polícia nos expulsaram. Eles não queimaram nossos barracos e permitiram que levássemos nossas coisas conosco. O terreno virou depois local para um conjunto habitacional do governo. Diadema pode ser vista de muitas formas e sob muitas luzes.
Aos treze anos, reunia-me com amigos em casa e passava horas discutindo as letras de Renato Russo, Raul Seixas e bandas punks. Fiquei como Office-boy na Paranoá até os dezessete anos num percurso que considero retrógrado, dado as tarefas medíocres a que me limitavam.
Fiz o Ensino Médio à noite. Por diversas vezes me apropriei de livros que mofavam na biblioteca inativa da escola estadual, crendo que comigo eles estariam em melhores condições. Vendo a incapacidade dos professores de responder às perguntas dos alunos, passava aulas inteiras lendo dentro da classe, independentemente da matéria que estivesse sendo apresentada. Eu não tinha dinheiro para terapia com um fonoaudiólogo, então continuei a batalhar com minha gagueira.
Com dezesseis anos entrei fiz minha primeira oficina literária, sob a coordenação da poeta Beth Brait Alvim, no Centro Cultural Diadema, em um grupo que ampliou minhas referências culturais e oportunidades vez de meu país e viajei para a França, cujas belezas e suas contradições me fizeram valorizar mais os ganhos que já temos conquistado em terra brasileira.
de aprendizado. Estava encantado pela pluralidade de idéias discutidas naqueles encontros. Sentia minhas relações com o saber finalmente potencializadas. Aprofundei minhas leituras em autores como Nietszche, Platão, Karl Marx, Maquiavel, Aldous Huxley e Thomas More.
Em seguida participei de diversas oficinas de teatro e vídeo, além de palestras, debates e saraus, em quase todos os centros culturais da cidade. Assistia peças todos os finais de semana. Considerava os centros culturais como nossos espaços de redenção, locais sagrados para a contemplação e difusão da arte. Participei de discussões com artistas e agentes culturais da cidade, que se tornaram amigos. Continuei a escrever e, em 2003 inscrevi poemas na Mostra de Artes de Diadema. Em abril de 2005 um dos meus contos será publicado em uma coletânea de escritores da cidade que como eu ousam desafiar, com seu pulso e talento, o vazio imenso da modernidade.
Jimmy Brandon Neves de Ávila, 23, mora em Diadema desde 1992. Na escola estadual, conviveu com as crianças pobres da vizinhança e com o movimento hip-hop.
Fui morar em Diadema aos 11 anos, quando meus pais estavam em dificuldade financeira. Morávamos de aluguel em bairros de classe média na capital. Meu pai trabalhava como comerciante e minha mãe complementava a renda fazendo crochê para mulheres da classe média paulistana. Com esforço construímos uma casa bem simples, em um terreno herdado do meu avô, em Diadema.
Através de amigos, tive contato com a dança, o graffiti e o rap, justamente quando o movimento hip-hop ganhava força em Diadema. A mobilização da população e de agitadores culturais passou a contar com o apoio da Prefeitura. Vieram trabalhar aqui alguns dos pioneiros do hip-hop no Brasil, como Nelson Triunfo, Marcelinho Beck Spin, DJ Hum e os grafiteiros Gêmeos. Até então, eu não tinha entrado em contato com qualquer tipo de manifestação cultural ou artística, seja pela escola ou por influência dos meus pais, não alfabetizados. Em 1993, comecei a freqüentar o Centro Cultural Campanário e a participar de oficinas de hip-hop. Lá se realizavam encontros de estudos de temas como criminalidade, pobreza e inclusão social, além de aulas de break e workshops de discotecagem e graffiti. Com amigos formei um grupo de rap chamado Street Break, mais tarde Shadow B. Boys, que se tornou popular entre a cultura hip-hop de Diadema. Orgulhávamos de ser, no gênero, o grupo mais jovem conhecido.
Minha escola era palco de brigas, desrespeito aos professores, roubos e mortes. Todos sabiam que a escola estava repleta de marginais, que ameaçavam os professores, inspetores ou diretores. Minha classe tinha pelo menos uns dez bandidos, que levavam armas para dentro da escola e não tinham medo de desfilar com elas pelo pátio, como faziam nas ruas do bairro. Alguns fumavam maconha no banheiro. Em condições como essa, o ensino ficava comprometido, mesmo para aqueles que estavam interessados em aprender. A saída era pedir orientação ao professor para estudar por conta própria em casa.
Procurei me instruir frequentando bibliotecas municipais, que infelizmente tinham acervos e serviços de orientação muito deficientes. Também contei com a cooperação das freguesas da minha mãe, que passaram a guardar os jornais para mim. A notícia vinha um pouco atrasada, mas o importante era ter acesso a ela. Aos 15 anos, arrumei meu primeiro emprego formal em uma rede de farmácias de manipulação em São Bernardo do Campo como office-boy, emprego ideal para quem gosta de ler. Agora já podia comprar jornais e revistas com meu próprio dinheiro.
Se o hip-hop despertou meu senso crítico e interesse por temas sociais, o estudo da Bíblia definiu meu senso ético para sempre. Depois de perder um ente muito querido pratiquei a leitura das sagradas escrituras por um longo período. Li e comentei o Pentateuco, os evangelhos, as Cartas de Paulo e o Apocalipse, entre outros. A partir de 1997, minhas atividades culturais foram se desviando cada vez mais da região do ABC, para a cidade de São Paulo, que oferece um leque mais amplo de palestras, seminários, conferências e cafés filosóficos em centros culturais de grandes bancos, livrarias e universidades. Quando tinha 16 anos, li na Folha de São Paulo uma entrevista do historiador marxista inglês, Eric Hobsbawm. Pude comprar numa banca de jornal em São Paulo seu livro, A Era dos Extremos. Depois li A Riqueza e Pobreza das Nações de David Landes e agora leio Manias, Pânicos e Crashes, de Charles Kindleberger. Assim fui compensando a minha impossibilidade de cursar uma faculdade de comércio exterior, um velho sonho que acabo de realizar este ano, entrando no Instituto Metodista de São Bernardo do Campo.
Assassinatos e guerra civil
Em 1999, 11.455 assassinatos foram registrados na Grande São Paulo, em um clima de negligência das autoridades federais, estaduais e municipais. As organizações políticas estavam desorganizadas e carentes de recursos. A segurança pública ainda não era um grande assunto político. Estes 11.455 assassinatos em São Paulo superaram os totais registrados em outras cidades grandes, como os 667 homicídios de Nova York naquele ano. Os assassinatos em São Paulo eram, grosso modo, comparáveis em escala às mortes anuais de civis em insurreições e guerras como as do Iraque, de Serra Leoa e da Somália. Em um ano, no Kosovo (1998-99), 2.000 pessoas foram mortas em guerra civil e limpeza étnica, mobilizando uma ação imediata da OTAN com apoio das Nações Unidas. No Peru, 30.000 pessoas foram mortas pela insurreição guerrilheira do grupo maoísta Sendero Luminoso. Estas mortes, que ocorreram em um período de dez anos, equivalem a somente três anos de homicídios da Grande São Paulo.
Os moradores de Diadema têm aprendido que uma epidemia de homicídios é terrível, mas a tolerância aos homicídios é muito pior. Em 1999, Diadema atingiu uma taxa de homicídios de 141 por 100 mil habitantes, uma das mais altas do planeta. Quatro anos mais tarde, em 2003, a taxa foi reduzida pela metade, graças a uma mobilização cívica e política dos moradores e dos governos municipal e estadual. Essa tomada de consciência começou a crescer após o choque com a violência da polícia na Favela Naval, uma aglomeração de barracos à beira de um canal fétido, na divisa entre Diadema e São Bernardo.
Em março de 1997, um cinegrafista amador gravou de um barraco na favela, durante três dias seguidos, cenas de policiais torturando jovens durante as blitz noturnas da Polícia Militar. Os garotos apanhavam dos policiais sem esboçar reação. A batida culminou no assassinato de um dos revistados, que, depois de ser espancado e gritar que tinha pego o número da viatura, foi baleado no pescoço. As fitas foram enviadas para o Jornal Nacional. Gravações de TV e fotos da imprensa foram transmitidos por todo o mundo, retratando Diadema e a Favela Naval como palco de violência e degradação urbana.
Em 2000, o Instituto Fernand Braudel De Economia Mundial se tornou parte da mobilização cívica para reduzir os homicídios, organizando um Fórum de Segurança Pública que se reunia mensalmente na Câmara de Vereadores com os chefes policiais locais e lideranças cívicas, políticas e religiosas. Com todos os seus problemas, as linhas de responsabilidade política e administrativa em Diadema eram claras e coerentes, em contraste com a estrutura política amorfa e caótica da gigantesca metrópole da Grande São Paulo, com uma população de 18 milhões, distribuída em 39 municípios. Seu tamanho compacto, a natureza de seus problemas e sua estrutura política e administrativa faziam de Diadema um campo promissor para pesquisa e ação social de nosso Instituto.
São Paulo não é uma metrópole de cartão postal. Tem poucos monumentos arquitetônicos e atrações turísticas, mas vibra com vitalidade, diversidade e atividade empresarial de muitos tipos. Os 376.000 habitantes de Diadema representam apenas 2% da população da Grande São Paulo. Diadema ocupa uma pequena área, de 30 quilômetros quadrados, com a segunda maior densidade demográfica do Brasil, em uma acidentada franja de terreno prensada entre dois municípios: São Paulo (10 milhões de habitantes) e São Bernardo do Campo (800.000).
Diadema é cortada pela estrada principal que liga São Paulo a Santos, a Rodovia dos Imigrantes, inaugurada em 1974. A abertura da primeira estrada moderna para Santos, a Via Anchieta, em 1947, estimulou a instalação de muitas indústrias nos subúrbios do ABC e, em seguida, um fluxo migratório de operários e suas famílias para ocupar os terrenos de Diadema, mais perto das fábricas. Quando Diadema virou município em 1959, deixando de ser distrito de São Bernardo, uma explosão demográfica já estava acontecendo para acabar com a tranquilidade de suas antigas chácaras, florestas e casas de fim de semana. Entre 1950 e 2004, a população de Diadema cresceu de 3.000 para 376.000, aumentando a uma taxa anual astronômica de 9% durante mais de meio século. Surgiram 192 favelas. A topografia acidentada, com mais de 40 declives acentuados, mostrava do alto espaços preenchidos com barracos. Mas os moradores, obrigados a conviver com a violência, eram em sua maioria gente esforçada, tentando viver e criar seus filhos decentemente. Enfrentavam nos seus bairros enchentes, desabamentos, falta de pavimentação e iluminação e muita pobreza.
Aquela época foi extraordinária na história da urbanização. A Grande São Paulo registrou a taxa mais alta de crescimento populacional a longo prazo na experiência humana, aumentando de 31.000 em 1870 para 18 milhões em 2000, a uma taxa anual de 5%. Entre 1940 e 1960, a população da capital cresceu em 171% e a periferia em 364%. Entre 1950 e 1980, a população da Grande São Paulo quadruplicou. O crescimento foi especialmente intenso nas décadas de 60 e 70, quando a metrópole absorveu 2 milhões de migrantes. As instituições públicas fracas eram incapazes de atender bem às demandas crescentes.
“Faroeste”
A periferia da Grande São Paulo ganhou fama de ser um faroeste. Diadema mostrou características de vida de fronteira das histórias da ocupação territorial humana: assentamento precário, pequena presença do governo e reduzida organização local. Em seu estudo sobre as altas taxas de homicídio na Inglaterra do século XIII, James Given descobriu que a violência foi pior em regiões pioneiras com instituições fracas como a Floresta de Arden (reduto do bando lendário de Robin Hood): “Como região de fronteira, possuía poucos meios institucionais para resolver conflitos. Assim, os homens foram obrigados a recorrer mais à violência do que em outros lugares. Para o homem pobre, a violência era um dos poucos meios, ainda que não muito eficiente, para influenciar o comportamento do adversário em uma disputa”.
Na mesma época, as cidades-estado italianas do século XIII estavam sofrendo com outro tipo de violência de áreas de fronteira, que continuou até suas instituições se consolidarem. “A manutenção da ordem interna das cidades apresentou dificuldades em todas as cidades medievais”, escreveu o historiador Daniel Waley. “As leis contra o porte de armas mostram qual tipo de perturbação era temida. Os homens tendiam a estar com os ânimos exaltados, se sentindo ofendidos facilmente e exprimindo sua raiva com violência física e, consequentemente, suas leis se referem a disputas e lutas”. Romeu e Julieta, de Shakespeare, que se passa em Verona, nos fornece uma ilustração vívida desse tipo de comportamento. Os mesmos princípios de violência de fronteira ocorreram no faroeste dos Estados Unidos, após a guerra com o México (1846-48) e a Guerra Civil (1860-64), com a difusão do revólver Colt, que semeou terror nas novas cidades ao oeste do Rio Mississipi, da mesma maneira que a difusão de armas de fogo estimulou os homicídios em Diadema e outras localidades na periferia de São Paulo. Esse tipo de violência marca também a história de grilagem e assassinatos na Amazônia hoje.
Numa história das violentas Cattle Towns do Kansas, Robert Dykstra afirmou que “a tradição alegaria que os homicídios nas cidades pecuárias envolviam tipicamente a troca de tiros, o gunfight. Entretanto, menos de um terço das vítimas chegou a atirar. Muitas delas aparentemente não portavam armas”. Os cidadãos e as autoridades das cidades do Kansas se empenharam na luta contra os homicídios, como em Diadema hoje. Eles triunfaram, quando as instituições se consolidaram.
O apogeu do faroeste em Diadema está acabando. Entre 1950 e 1980, a população da cidade crescia a uma taxa média anual de 15,6%, enquanto a Grande São Paulo cresceu a uma taxa de 5,3%. A partir de 1980, o crescimento demográfico de Diadema caiu para 2,2% ao ano . Nas duas décadas seguintes, caiu para 1,8%, pouco mais que a taxa da região metropolitana. O relaxamento das pressões demográficas, em Diadema e no resto da metrópole, abriu espaço para as instituições públicas assumirem gradativamente suas funções. O controle da inflação, a partir de 1994, contribuiu para fortalecer esse processo.
O primitivismo e a violência em Diadema estão cedendo à consolidação das instituições, ao investimento público e à cooperação entre vizinhos. A taxa de mortalidade infantil caiu de 83 mortes por cada mil nascidos vivos, em 1980, para 16 em 2004. A taxa de homicídios caiu de seu ápice de 141 por cada cem mil habitantes, em 1999, para 74 em 2003, uma melhoria de 47% em apenas quatro anos, excluindo Diadema das 10 cidades mais violentas do Estado. Apesar da polícia registrar uma queda de mais 20% nos homicídios em 2004, essa taxa permanece muito alta. As forças que impulsionam essas melhorias são complexas, mas isso atesta a consolidação da democracia em condições difíceis.
Conforme a população se assentava nestes bairros em formação, os recursos públicos eram investidos de forma precária em equipamentos sociais como: escolas, postos de saúde, luz elétrica, água, asfalto e esgoto. A pressão dos movimentos sociais e a disposição de governantes em atender aos pobres ajudaram a mudar a cara destas regiões nas últimas décadas. Mas, se os direitos sociais foram atendidos, faltou o estabelecimento de uma lei comum para garantir os direitos civis.
Os justiceiros
As falhas em garantir o cumprimento das leis tiveram duas consequências. De um lado, abriram espaço para o espírito empreendedor dos moradores. Eles criaram do nada cidades com centenas de milhares de habitantes, com casas feitas por eles mesmos em lotes ilegais. Apesar da situação irregular, tornavam-se bairros normais, que tinham padarias, mercados, açougues, botecos e locadoras de vídeo. Mas a quase plena liberdade para agir permitiu também que o uso individual da força se transformasse em uma ferramenta para impor a própria vontade aos outros moradores.
A autoridade dos justiceiros durou quase duas décadas. Durante um bom tempo, a população da região sul da Grande São Paulo enxergou os justiceiros como aliados. Os assassinatos eram aceitos porque quem morria estava supostamente envolvido com os assaltos, arrombamentos, homicídios e extorsões que proliferavam nestes bairros onde a força falava mais alto que a lei. Diferente dos crimes nos bairros centrais de São Paulo, o ladrão que ameaçava não desaparecia para sempre da vida das vítimas depois do roubo. Eles eram vizinhos e andavam para cima e para baixo com ar de superioridade porque se dispunham a matar aqueles que não se submetessem às suas vontades.
Em vez das autoridades do Estado ajudarem a apagar o fogo e garantir leis impessoais, jogavam gasolina na fogueira e fomentavam um ciclo de violência, alimentando a crença da população na eficiência das soluções privadas. Para os vizinhos, o trabalho dos justiceiros complementou o da polícia, que usava os mesmos métodos para tentar manter a ordem. Alguns justiceiros eram policiais ou apadrinhados por estes. A elevada quantidade de armas no ambiente, a alta densidade demográfica e o perfil jovem da população acentuaram a gravidade do drama.
Um antigo comerciante de Diadema que viveu no ambiente dos justiceiros é hoje uma pacata e influente liderança na cidade. Chegou de Minas Gerais quase adolescente. Trabalhou como empregado por muito tempo. É um self-made man, entre tantos que fizeram a história da metrópole. Ele lembra que no final dos anos 70 foi preciso contar com muita vontade e tino comercial para prosperar como comerciante na Vila Nogueira, região que começava a ganhar cara de bairro e a perder a aparência de desordem, típica das favelas que nascem das invasões e loteamentos clandestinos. Nesta fase de crescimento desordenado, ele tinha uma lanchonete bastante movimentada na região. Negociador hábil, vendia e comprava novos estabelecimentos para reinvestir o capital de giro. Mas teve que enfrentar os bandidos.
“Eles chegavam com as mercadorias roubadas e falavam com a gente como se tivéssemos a obrigação de comprar ou esconder”, conta. “Os comércios eram arrombados direto, era preciso enfrentar para ter respeito”. Naquela fase, ele acreditava que apenas os justiceiros e os policiais que matavam podiam ajudá-los. Hoje ele tem horror a estas histórias. “Não é que eu quisesse matar”, diz ele. “Não é que eu odiasse aquelas pessoas, mas a gente precisava enfrentar para continuar levando a vida aqui em Diadema”, explica. “Quem abaixava a cabeça, estava frito”.
A história destes matadores costumava se repetir. Começavam a matar por causa de um trauma pessoal: família ofendida, casa roubada, mulher violentada. O futuro justiceiro matava por vingança. Comerciantes acabavam sabendo do episódio e iniciavam contatos para que se tornasse uma espécie de xerife do bairro. Depois que o gosto de matar subia à cabeça, os justiceiros passavam a cobrar pedágio para que os moradores andassem em suas próprias ruas. Ninguém conseguia lidar com tamanho poder sobre a vida e a morte. Vitão, um pernambucano com fama de ser autor de cem assassinatos, matou os dois comerciantes que o sustentavam. Os justiceiros agiam conforme seus caprichos.
Em 1982, Diadema assumiu o primeiro lugar no ranking de homicídios entre os 39 municípios da Grande São Paulo, ali permanecendo quase ininterruptamente até 2000. Os homicídios eram admitidos em silêncio. Os que gritassem ou tornassem o problema público podiam morrer. Houve momentos, contudo, em que a situação ficou insuportável. A comunidade mudou de postura diante dos assassinatos, assumindo o desafio de mudar o regime de violência. Graças à vontade política e ao amadurecimento da sociedade, as medidas que foram tomadas deram resultados que foram consolidados com o decorrer dos anos. No entanto, o progresso era gradual e também irregular.
Nasce o PT
Diadema apresenta uma peculiaridade. Foi ao mesmo tempo uma das cidades mais violentas do mundo e uma das mais politizadas do Brasil. Quando em 1982 o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), oposição ao regime militar, elegeu Franco Montoro para o governo de São Paulo, Diadema elegeu como prefeito o sindicalista metalúrgico Gílson Menezes, do recém fundado Partido dos Trabalhadores. Como muitas lideranças políticas de Diadema, Menezes era migrante do Nordeste. Completou o ensino médio e virou liderança nas históricas greves dos metalúrgicos no ABCD de 1978-79.
Naquela época, o PT era uma mistura de sindicalistas, católicos de esquerda, artistas, professores universitários, trotskistas e outros pequenos grupos de esquerda. Desde 1982, todos os prefeitos de Diadema têm sido líderes ou dissidentes do PT. As dissidências foram furiosas, noticiadas pela imprensa nacional. Saindo do PT, os ex-prefeitos Menezes (1983- 88; 1997-2000) e José Augusto da Silva Ramos (1989-92) viraram adversários veementes de seu antigo partido em pleitos eleitorais apertados. Em 1996 Menezes voltou a ganhar a eleição para prefeito como candidato da oposição. Em 2004 o prefeito atual, José de Filippi Jr. (1992- 96;2001-04), do PT, perdeu para José Augusto no primeiro turno com uma diferença de 9.752 votos, mas foi reeleito no segundo turno por 554 votos. A bandeira principal da campanha de Filippi foi a redução da violência, proclamada em faixas e cartazes nas principais avenidas da cidade.
Guiado por idéias socialistas, o PT assumiu a prefeitura de Diadema em 1983 para dar voz às demandas populares reprimidas. A criação de infraestrutura e serviços básicos era tão urgente que o problema de violência foi deixado de lado. Nas administrações sucessivas, as favelas foram urbanizadas e a numeração das casas permitiu aos moradores terem endereço fixo e moradias legalizadas.
Os moradores de Diadema têm uma relação mais íntima com as autoridades locais do que os cidadãos de um município desorganizado como São Paulo, onde em bairros de centenas de milhares de pessoas faltam limites territoriais definidos, representação política responsável e linhas claras de ação administrativa. (Ver “São Paulo Metrópole: Desorganização política e problemas de escala”, Braudel Papers. No. 29/ 2001). Com todos os imbróglios na intensa vida política de Diadema, a classe política responde mais às pressões da população.
No final da década de 80, a administração do prefeito José Augusto começou a criar uma infraestrutura social. Hoje Diadema tem 13 bibliotecas públicas, um centro cultural em cada um dos 11 bairros, programas de esportes para idosos, um centro de referência para mulheres vítimas de violência, dois hospitais (municipal e estadual), 22 centros de saúde, nove campos de futebol, seis ginásios e mais de 40 quadras esportivas. Tem uma Casa do Hip Hop, uma Companhia de Dança, a Banda JazzSinfônica e até um Observatório Astronômico Municipal. Esses instrumentos de política cultural criaram novas alternativas de diversão e desenvolvimento para os jovens, como testemunham os relatos autobiográficos dos jovens educadores dos Círculos de Leitura de nosso Instituto, moradores de Diadema, publicados nessa edição de Braudel Papers.
Nos anos 90, enquanto o Brasil se recuperava de décadas de inflação crônica e consolidava sua democracia, além da criação da infraestrutura urbana, dois movimentos se aceleraram em Diadema. O menos aparente na época, porém mais durável, foi a consolidação da infraestrutura social. O mais visível foi o agravamento do problema de homicídios a partir de 1995. Com a urbanização das favelas, a Prefeitura começou a intervir na desordem local. Mas a polícia continuou a julgar e executar à vontade. A violência ainda era a via principal para ganhar respeito.
Invasões e ocupação precária
Em 1970, Diadema tinha 79 mil habitantes. Dentro de uma década, a população pulou para 229 mil pessoas. Sem a supervisão da Prefeitura, as imobiliárias comandaram o processo de ocupação. Subdividiam lotes de 500 metros quadrados, que eram difíceis de serem vendidos no mercado, em dez pedaços pequenos, com elevada procura, adensando os bairros do dia para a noite, independentemente das leis ambientais ou urbanas. Muitas famílias ocuparam áreas de proteção aos mananciais da Represa Billings. O bairro Eldorado, onde moram 40 mil pessoas, foi construído em áreas de proteção ambiental.
Se a especulação era um bom negócio para os donos de imobiliárias, também era para os migrantes, que lutavam para conquistar uma casa própria e se livrar dos aluguéis. Para o Estado, o dilema entre barrar ou não a chegada dos novos moradores era complicado. Era possível fechar os olhos para a legislação e permitir que populações miseráveis construíssem suas casas, medida populista que evitava brigas complicadas, ou aplicar a lei e ser obrigado a destruir barracos para preservar a propriedade e o ambiente do local, postura capaz de fazer qualquer político ficar com fama de inimigo dos pobres. As autoridades preferiam se omitir.
Neste cenário de crescimento abrupto e desordenado, não faltam motivos para conflitos. Em um ambiente de alta competitividade, onde os homicídios dificilmente eram punidos, as pessoas que matavam conquistaram “na marra” mais direitos do que aqueles que não matavam. Na década de 90, grupos que lucravam com a negociação de barracos foram formados em diferentes bairros. Em alguns casos, organizavam as invasões e quando se desentendiam com determinado morador, o matavam para depois vender seu barraco.
Os limites do populismo
As lideranças políticas inicialmente incentivavam as invasões. Mas com o tempo começaram a perceber o tamanho da confusão em que se metiam. Apesar das invasões continuarem nos anos 90, as autoridades tentaram controlá-las na segunda gestão petista. Seus incentivadores, que tiveram bastante espaço e poder durante o governo de Menezes, foram colocados na geladeira. Alguns foram expulsos do PT por seu relacionamento com os invasores. O populismo e a desordem tinham limites.
Dois casos marcaram a mudança de atitude do PT no começo da década de 90. O novo prefeito, José Augusto, iniciou processos de reintegração de posse após algumas invasões. Houve negociações com invasores no Buraco do Gazuza e na Vila Socialista, que causaram polêmicas, mas mostraram a disposição do município em acatar a lei, mesmo que às custas do sonho de milhares de migrantes. Na região do Buraco do Gazuza, a Prefeitura planejava construir apartamentos em mutirão, em um projeto que previa creche e escola. Entrou com uma ação de desocupação na Justiça, enfrentando a pressão dos invasores, muitos deles membros do PT. A reintegração de posse na Vila Socialista, hoje um conjunto habitacional, causou confrontos e a morte de três pessoas em 1990. O vereador do PT Manoel Boni, um líder da ocupação, teve a mão direita amputada por um coquetel molotov.
A disputa sobre a desocupação do Buraco do Gazuza provocou a saída do PT do vice-prefeito e de vereadores simpáticos ao movimento. Mas o diálogo prosseguiu. A Prefeitura aceitou ceder, 45 dias após a invasão, 50% do terreno ao novo bairro que se formava, ficando com a outra metade para construir creche, escola e centro comunitário. Os moradores do Gazuza continuaram mobilizados para conseguir água, luz e asfalto. Com faixas e cartazes, protestavam na Sabesp, na Eletropaulo e na Prefeitura. Menos de dez anos depois de nascer, o bairro já estava consolidado. Os problemas legais uniram os moradores, que se organizaram para negociar e para lutar por direitos na arena política.
Os prefeitos de Diadema passaram a priorizar a urbanização das favelas já assentadas. A Prefeitura começou a se comprometer mais do que nunca na dinâmica interna desses bairros, o que com o tempo ajudou na queda dos índices de criminalidade. Mas os policiais continuaram julgando e executando a partir de seus critérios tresloucados. A violência permaneceu como a principal ferramenta para se fazer respeitar.
Esforços de governo
Entre 1993 e 1996, depois das mudanças da gestão de José Augusto, seu sucessor, José de Filippi Júnior, intensificou os esforços para a urbanização de loteamentos clandestinos. Canalizaram-se esgotos e córregos. A maioria das favelas foi urbanizada com a participação dos moradores, acompanhados por técnicos e engenheiros da Prefeitura para construir novas casas. Com a cidade repleta de obras e com funcionários da prefeitura batendo cartão nos bairros onde se concentravam os casos de violência, esses bairros deixaram de parecer terra de ninguém.
A segurança pública no Brasil é de responsabilidade dos governos estaduais. Nos estados, cada aparato policial segue um modelo europeu, com uma Polícia Militar fardada, patrulhando as ruas, e uma Polícia Civil, à paisana, que conduz as investigações. As duas forças policiais tinham severas rivalidades e procedimentos caóticos. Tradicionalmente, resistiam à cooperação.
Nesta época, começou o respaldo da Polícia Militar. Em 1992, inaugurou-se o primeiro Batalhão de Diadema (24°), deixando de depender do comando em São Bernardo. Os novos comandantes queriam mostrar serviço. Esta união de esforços da prefeitura e da polícia, além da criação de nova infraestrutura, contribuíram para que os índices caíssem temporariamente.
A cidade só ganhou sua própria delegacia seccional da Polícia Civil em 1999. O delegado assistente Mitiaki Yamoto, que trabalha há 15 anos em Diadema, ressalta a dificuldade de acesso às favelas: labirintos de barracos sem ruas, com escadas improvisadas e muitos becos sem saída. Ele conta que procurou em um labirinto do Campanário um bando de justiceiros conhecidos como Padeiros, apreendendo armas e munição em um barraco que tinha um córrego no seu interior e ratos circulando perto da máquina em que faziam pão para vender no bairro.
Na década de 90, o crescimento demográfico de Diadema continuou a cair de ritmo e a institucionalização se acelerou. A urbanização, o alargamento e a iluminação das ruas permitiram às ambulâncias e viaturas de polícia acesso a lugares antes isolados. Os novos números nas casas e os endereços para o correio criaram um maior vínculo com a vizinhança. As obras, realizadas em mutirões, permitiam à prefeitura se manter presente. O espaço público parecia ocupado, sob as normas da comunidade. Lembra Mitiaki: “Antes disso, tinham alguns moradores que não fixavam residência e acontecia o seguinte: ‘Fulano matou alguém e fugiu para outra favela da Zona Sul’. Quando começou a urbanização, o vínculo com a cidade aumentou e a tendência de praticar crimes contra a vida diminuiu. As casas em uma favela urbanizada deixavam de ser esconderijos”.
Houve dois momentos em que os homicídios em Diadema caíram bruscamente: no começo da década de 90 e depois de 1999. Em ambas as situações, houve ações diretas da Prefeitura e das polícias. Mas os homicídios aumentaram de novo a partir de 1995, pulando de 112 para cada 100 mil habitantes para 141, em 1999. O curioso é que tudo parecia transcorrer dentro da mais perfeita normalidade. Os investimentos municipais eram os mesmos. Nenhuma variação significativa de empregos ou pobreza podia ser identificada. Não haveria, à primeira vista, uma explicação razoável para o aumento. No submundo do crime, entretanto, ocorria uma movimentação estranha, detectada pelos funcionários municipais presentes nos bairros.
Em 1995, ocorreram trocas rápidas de propriedade entre donos de aproximadamente 200 lotes de terra espalhados por Diadema, que estavam sendo urbanizados. Estes lotes eram comprados a preços muito mais altos que os do mercado. “Nós investigamos e percebemos que se tratava de traficantes que se mudavam para a cidade e que estavam negociando lugares para se estabelecerem”, lembra Regina Miki, que legalizava títulos de propriedades naquela época e hoje é secretária de Defesa Social de Diadema. Isso ocorreu quando o crack e a cocaína estavam se espalhando pela periferia. Disputas por territórios e mercados inflamaram um novo ciclo de violência.
O Morro do Samba
O Morro do Samba, no Jardim Ruyce, era uma grande área privada, invadida em 1990 por aproximadamente 300 famílias. Se transformou no quartel-general de um dos maiores grupos de traficantes da zona sul da Grande São Paulo. Biroska, seu líder, era poderoso, contando com muitos olheiros e seguranças e com uma sirene montada em um poste de luz para alertar contra invasões policiais. Os vizinhos se alarmaram quando Biroska começou a aliciar crianças de até 12 anos para o tráfico. Além de vender no varejo.
em Diadema, Biroska distribuía para bocas menores em toda a região, chegando a vender um quilo de cocaína a cada dois ou três dias. Biroska foi preso no ano de 2000, em uma troca de tiros com policiais de São Bernardo. Não faltaram candidatos a substituí-lo no comando, apesar dos riscos. O número de traficantes se multiplicou nas favelas e nos conjuntos habitacionais. Eles lutaram furiosamente entre eles mesmos pelo controle dos territórios, alimentando um novo ciclo de mortes.
Os negócios no Morro do Samba espalharam seus riscos para fora. Atingiram a Escola Estadual Mário Santa Lúcia no bairro Serraria, que ficava perto do local. Nosso interesse nessa escola surgiu do trabalho de campo do Instituto Fernand Braudel, que mostrou que os alunos nas escolas da periferia têm pouco treinamento em leitura e escrita, e também que em cada escola há núcleos de estudantes talentosos, ávidos por ler e aprender. A diretora da escola convidou o Instituto a conduzir Círculos de Leitura em uma tentativa desesperada de encontrar um meio para controlar a violência e a desordem. Conduzíamos Círculos de Leitura nessa escola para ler e discutir com adolescentes clássicos de Shakespeare, Daniel Defoe, Ernest Hemingway e as tragédias de Sófocles.
Em abril de 2002, a diretora foi ameaçada de morte por um homem que invadiu a escola. A coordenadora pedagógica teve o seu celular roubado na porta da escola e uma professora teve seu carro danificado no pátio. Na calçada, em frente à escola, alguns adolescentes ficavam sentados consumindo drogas e bebidas alcoólicas. Os jovens traficantes dominavam o grêmio estudantil. Segundo os professores, os banheiros eram utilizados para trocas de armas e drogas entre os alunos. A escola foi construída ao lado de um córrego que inundava as salas de aula na época de chuvas, provocando a suspensão das aulas. As águas do córrego alagaram os banheiros, misturando-se à urina e as fezes dos sanitários entupidos. Em janeiro de 2004, a escola foi fechada por ordem da Promotoria da Infância e Juventude.
Escolas
Funcionam em Diadema 134 escolas de ensino fundamental e médio, a grande maioria estaduais. O PT tem resistido ao movimento nacional de municipalização do ensino fundamental, poupando-se de encargos no orçamento e de desgaste político em conflitos com os sindicatos de professores e diretores, em geral dominados pelo partido. Assim, o governo municipal tem se poupado também da necessidade de enfrentar os problemas endêmicos das escolas, como violência, vandalismo e tráfico de drogas e de armas dentro dos prédios, faltas e rotatividade excessivas de professores e diretores, e sobretudo, o problema da qualidade de ensino. Em 2001, dois terços das escolas estaduais trocaram de diretor. Em alguns casos, duas ou três vezes.
Apesar da recente expansão das matrículas, as escolas públicas de Diadema operam dentro de uma cultura de fracasso que se estende ao ensino público de quase toda América Latina. Em 1980, só 38% das crianças de Diadema haviam terminado os primeiros quatro anos de escola e só 8% estudaram oito anos. A evasão de alunos matrículados beirava os 50%. Hoje, a matrícula no ensino fundamental em Diadema é quase universal, como no resto do Brasil. O ensino médio está se expandindo rapidamente, mas um terço dos adolescentes ainda está fora das escolas. O maior problema, porém, é a péssima qualidade do ensino. Existe pouca pressão da população e não há preocupação da classe política para melhorá-lo.
Com essa cultura do fracasso, a educação pública na América Latina é o elo mais frágil no processo democrático. O sistema ainda não entrou em colapso somente por causa da demanda pública por algum tipo de escola, e porque as escolas fornecem uma fonte abundante de emprego formal e pensões para professores e administradores, o que garante aos políticos um grande número de votos. Salvo raras exceções, eles têm pouco interesse no aumento da qualidade. O ensino efetivo é minado pela seleção adversa de profissionais, que recebem salários baixos e treinamento precário, são encurralados em um sistema de incentivos perversos. Existem poucos padrões de qualidade ou necessidade de prestar contas. As faltas constantes de professores deixam os alunos sem aula, tumultuando os corredores e provocando um barulho infernal que impede o ensino nas salas onde há professores presentes. Esses padrões de comportamento são aceitos como normas.
Existem escolas públicas boas, mas são uma pequena minoria. Exemplos raros de excelência se formam graças ao heroísmo isolado de poucos professores e administradores. Agora há oportunidade para focalizar a melhoria da educação pública, já que a expansão das matrículas tem se consolidado e o declínio das taxas de natalidade tem reduzido as pressões demográficas nos sistemas escolares. Na noite de 12 de março de 2001, um estudante foi morto em um corredor da Escola Estadual Átila Ferreira Vaz, com um tiro na cabeça. No dia 23 de março, outro aluno foi morto a tiros na entrada da Escola Estadual Nicéia Albarello Ferrari, ao voltar de uma excursão escolar. Em 11 de abril, dois menores foram presos por portar revólveres dentro da Escola Estadual Antonieta Borges Alves. Em 17 de abril, dois estudantes foram feridos a bala dentro da Escola Estadual Mércia Artimos Maron.
No meio dessa violência, um grupo de professores recorreu ao Fórum de Segurança Pública na Câmara de Vereadores a procura de apoio e orientação. O Fórum criou uma comissão especial de segurança escolar composta pelos dois chefes das polícias Militar e Civil, o coordenador de Defesa Social da Prefeitura, três vereadores de diferentes partidos, a presidente do Conselho Municipal de Educação e representantes do Instituto Fernand Braudel.
A comissão tentou visitar as 10 escolas de Diadema tidas como as mais violentas, para dialogar com os diretores, professores e pais. Essas visitas foram proibidas pela dirigente regional de ensino, cujo marido, policial militar, foi assassinado a tiros na frente de uma das escolas. A dirigente alegou que as visitas às escolas teriam de ser autorizadas pela Secretaria Estadual de Educação. Após uma reunião de duas horas, a então Secretária recusou-se a autorizar as visitas a fim de “preservar a integridade das escolas”.
Em 2004, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo abriu as escolas nos finais de semana para a comunidade local com cursos, recreações e esportes. As merendas escolares atingiram um padrão de excelência. Mas a Secretaria de Educação, com seis milhões de alunos e 250.000 funcionários, não tem um só profissional dedicado ao problema de segurança escolar. As rondas escolares da Polícia Militar recentemente conseguiram reduzir a violência, especialmente nas portas das escolas. Mas os problemas endêmicos do sistema persistem. As viaturas das rondas escolares precisam visitar muitas escolas em um dia, não podendo dar muita atenção aos casos de desordem que surgem. A Secretaria reporta uma queda de 26% nas agressões a professores em 2004, mas muitos desses fatos não são registrados. Os professores e diretores escolares que sofrem agressões e ameaças são orientados a fazer boletim de ocorrência na Polícia Civil, mas os mesmos agressores advertem piores consequências caso tomem essa providência.
Na Escola Átila, após o assassinato do aluno, as mães de outros alunos, agindo com muita firmeza, conseguiram dialogar com as autoridades escolares e a diretora que se recusou a recebê-las foi removida. Mas esses episódios de pressões dos pais são raros. A maioria trabalha longas horas. Muitos estudaram só dois ou três anos do primário em escolas rurais, o que torna difícil para eles avaliar o desempenho escolar de seus filhos.
O que inspira admiração é o esforço de alguns jovens de Diadema, de famílias pobres, para desenvolver suas capacidades intelectuais e profissionais isoladamente ou em pequenos grupos, aproveitando os recursos culturais do município. Muitos deles têm a garra de persistir até completar o ensino médio nas escolas noturnas, apesar da irregularidade e falta de conteúdo das aulas, e continuam sua luta para progredir, estudando nas faculdades particulares e escolas profissionalizantes da periferia. Só 26% dos que conseguem entrar na Universidade de São Paulo são formados nas escolas públicas. Os poucos que podem ocupar essas escassas vagas precisam fazer cursinhos preparatórios por dois ou três anos para compensar sua fraca formação nas escolas estaduais. Além do problema de qualificação acadêmica, os jovens da periferia precisam arcar com o alto custo do transporte público para continuar seus estudos. É admirável que um número crescente deles consegue vencer esses obstáculos.
Como resposta às pressões políticas pela criação de mais universidades públicas para acomodar o número crescente de alunos pobres que terminam o ensino médio, estão sendo criadas uma nova universidade federal no ABC e um novo campus da USP na zona leste de São Paulo. Mas o problema principal continua sendo a qualidade de ensino em todos os níveis.
A Favela Naval
No início da década de 90, enquanto as escolas se multiplicaram e a infraestrutura urbana se desenvolveu, a violência intensificou-se. Na nova fase dominada pelos traficantes, o papel do justiceiro deixava de fazer sentido, porque dificilmente uma pessoa sozinha seria capaz de lutar contra as novas autoridades do crime. Os pequenos traficantes dispostos a matar para se impor levaram a cidade a quebrar recordes históricos de homicídios por três anos seguidos. A violência causava pouca repercussão na comunidade. Alguns políticos costumavam negar que Diadema fosse uma cidade violenta, alegando que os altos índices de homicídio vinham da eficiência de seus hospitais públicos, que atraíam vítimas baleadas de outros lugares para morrer na cidade. Ao mesmo tempo, a polícia caiu no descaso até 1997, quando explodiu o escândalo da Favela Naval.
“Naquela época, quando perguntavam onde a gente morava, nas entrevistas de emprego, costumávamos responder que era na divisa de São Bernardo, para não falar Diadema”, lembra Luiza Guerra da Silva, presidente do Conselho de Segurança (Conseg) da Vila São José. “Dizer que morava em Diadema era uma vergonha e afastava os empregadores”.
Não havia mais como negar a gravidade do quadro. A Câmara de Vereadores formou, em 1997, uma Comissão Especial de Direitos Humanos e Cidadania, seguida por outras iniciativas cívicas. Assumir o problema era o primeiro passo antes de tentar soluções.
A polícia foi inicialmente o alvo principal do debate. A polícia local era um depósito de homens com problemas disciplinares. Dos 10 PMs flagrados no vídeo da Favela Naval, seis sofriam processos na auditoria militar e alguns tinham fichas criminais. O comandante do batalhão, Pedro Pereira Mateus, era dono de uma empresa de segurança privada. Ele passava pouco tempo em Diadema e não tinha controle sobre a tropa. Os policiais agiam como juízes e executores, aplicando sentenças de morte por sua própria conta. Para oficiais e soldados, trabalhar em Diadema era visto como uma forma de punição aos maus serviços prestados à corporação.
Depois do escândalo, a cidade deixou de ser considerada um lugar para a punição de policiais depravados. Bons profissionais foram enviados para Diadema, que se tornava uma espécie de laboratório de segurança pública. Depois de anos de baixos investimentos em equipamento e pessoal, reforços chegaram. Os quadros das polícias civil e militar quadruplicaram em poucos anos. Métodos mais eficazes de patrulha e investigação foram aplicados. Os produtos desses esforços foram novas prisões e mais descobertas de cativeiros de sequestros. As prisões superlotaram as cadeias e penitenciárias, obrigando o governo estadual a lançar um programa de emergência para construir novas instalações. Rebeliões e fugas de presos e internos da Febem tornavam mais urgentes as reformas que o governo está fazendo. A segurança pública se tornou uma das principais bandeiras nas eleições de 2002 para o governo de São Paulo.
A Favela Naval continua muito pobre. Frágeis barracos ainda se estendem ao longo do canal. Um terço dos moradores trabalha catando latas de alumínio e papelão. Esses materiais são empilhados em carroças puxadas por eles próprios, em bicicletas, ou ocasionalmente por um cavalo esquelético, e depois levados para um depósito primitivo no bairro. Ao mesmo tempo, muitas casas foram ampliadas e reforçadas com construções permanentes e grades de aço. Um novo centro comunitário foi construído e doado pela Mercedes Benz e uma imensa igreja da Assembléia de Deus foi aberta em 2004. Na administração do centro comunitário está Tato (Carlos Antonio Rodrigues, 41), que ganha sua vida consertando computadores para clientes em toda a metrópole, e ensina computação às crianças da vizinhança . “A maior mudança aqui foi a melhoria da segurança”, diz Tato. “A polícia evita vir aqui. A última morte foi há 18 meses. Antes disso, não houve nenhum assassinato em três anos. Quando vivemos com medo nada faz sentido. Quando o medo é removido, podemos nos concentrar nos problemas reais da vida. A segurança traz confiança. Agora, nossos adolescentes podem ficar na rua até duas ou três da manhã em completa tranquilidade”.
A mobilização cívica
O reforço nas polícias, depois do episódio da Favela Naval, não era suficiente para reduzir os homicídios. As relações entre a polícia e as autoridades locais ainda eram distantes. Em 1998, o prefeito Menezes disse que fazia vários meses que não falava com o chefe da Polícia Militar. A redução apareceu só depois que a Prefeitura, a Câmara Municipal e a comunidade começaram a se envolver.
Na mobilização política da comunidade, o Instituto Fernand Braudel reuniu apoios que levariam à união de esforços. Primeiro, o Instituto organizou uma assembléia popular contra a violência, em junho de 2000, presidido pelo prefeito Menezes, candidato à reeleição naquele ano. Dias depois, o Fórum de Segurança Pública realizou sua primeira reunião, na sede da Câmara Municipal, onde políticos, chefes das polícias Militar e Civil e líderes da comunidade se reuniriam mensalmente para discutir formas de atuação conjunta no combate ao crime, priorizando a queda dos homicídios.
As reuniões do Fórum foram conduzidas pelos presidentes da Câmara junto com a direção do Instituto Fernand Braudel, e o coronel da reserva da PM José Vicente da Silva, pesquisador do Instituto que, em 2002, se tornaria Secretário Nacional de Segurança Pública. O Instituto funcionava como um ator externo que podia intermediar os debates políticos com relativa isenção, por não participar das disputas na cidade. A coordenação local do Instituto, viabilizou relações com entidades públicas e comunitárias. Além disso, o Instituto organizou Círculos de Leitura nas escolas e bibliotecas públicas e, acompanhando o trabalho do Fórum, também fez entrevistas de campo para traçar a história e a dinâmica dos homicídios em Diadema.
O trabalho do Fórum avançou com a participação constante de dois excelentes profissionais, Dr. Reinaldo Correa, delegado seccional da Polícia Civil, e Ten.Cel. Luiz Carlos Barreto, comandante da Polícia Militar. Participaram também a coordenadora de segurança da prefeitura, o comandante da Guarda Civil Municipal, vereadores e lideres civis, com cobertura dos jornais locais. No começo de cada reunião, os chefes policiais relatavam as estatísticas criminais do mês anterior e faziam observações que permitiam ao Fórum analisar situações concretas e debater estratégias para resolver os problemas.
Ações conjuntas começaram a acertar o alvo, centradas em duas frentes principais: a primeira tratava da administração das forças policiais e da inteligência. Para isso, precisava da ação conjunta de guardas civis, policiais e agências municipais, sem os atritos e rivalidades comuns, nos bairros com maiores problemas. Nesse sentido, em uma segunda frente, o planejamento das operações era feito com mapas, estatísticas e softwares especializados. O Instituto Fernand Braudel contratou seis estudantes de direito como estagiários, para analisar inquéritos policiais de 618 casos de homicídio ocorridos entre 1997 e 1999. Trocas de tiros explicam 90% dos assassinatos. Apenas 30 desses homicídios foram esclarecidos.
Muitos dos inquéritos foram elaborados precariamente, mas deram impressão clara que muitos homicídios foram fruto de conflitos pessoais por questões banais, como brigas de bar ou ciúmes de mulheres. Os alarmantes números dos homicídios em Diadema eram resultantes de problemas diversos relacionados às drogas, álcool, brigas pessoais e aumento da quantidade de armas em circulação.
O prefeito Filippi, que voltava a governar o município em 2001, assumiu o desafio de baixar as mortes. A Guarda Municipal contava com 236 homens para dividir os serviços com os militares. Os carros da Guarda ficavam concentrados no centro e a Polícia Militar podia realizar rondas nos bairros apontados pelo levantamento estatístico como os mais violentos. Praças restauradas voltaram a servir como espaço de lazer. As escolas contavam com policiamento especial. Foram criados pátios municipais para o recolhimento de carros e motos apreendidos durante as blitz, com a garantia de guinchos da prefeitura para auxiliar o trabalho da polícia. A Feira do Rolo, que servia para desovar mercadorias roubadas, passou a ser fiscalizada. Em um novo projeto, Adolescente Aprendiz, o município tentou resgatar, com estágios e estudos, jovens que vivem em bairros onde o tráfico tem influência.
A criação do Disque-denúncia permitiu à polícia colher testemunhos anônimos por telefone e burlar a lei do silêncio. Pessoas que sabiam dos crimes em seus bairros poderiam orientar as investigações policiais. Com a popularização dos telefones celulares, podiam dispensar os telefones públicos para a realização da denúncia. Segundo o chefe da delegacia de homicídios, os telefonemas servem para orientar a busca de pistas e 50% dos casos de homicídios são resolvidos com a ajuda das denúncias por telefone. A Prefeitura começou a informatizar os dados de crime. Em 2004, câmeras de TV foram instaladas para vigiar pontos sensíveis da cidade. Membros da Guarda Municipal patrulham os 11 bairros a pé e de bicicleta, como “Anjos do Quarteirão”.
“Lei Seca”
No crescimento dos bairros populares, os botecos se espalharam à vontade. Eram uma opção de renda e de lazer para os moradores, mas também o palco de muitos homicídios. O Cel. José Vicente convidou ao Fórum policiais das cidades paulistas de Hortolândia e Barueri, que explicaram como a redução dos horários de funcionamento dos bares reduziu a violência nessas cidades. No final de 2001, foi apresentada na Câmara de Vereadores uma lei para fechar os bares às 23 horas, nos horários de maior número de homicídios. Em março de 2003, a partir das discussões no Fórum, a lei foi aprovada por unanimidade na Câmara Municipal, começando a funcionar em 15 de julho do mesmo ano, após uma intensa campanha de esclarecimento em folhetos e outdoors.
Liderada pela vereadora Maridite Oliveira a mobilização da classe política de Diadema convenceu os vereadores a fazer um pacto para não interceder pelos donos de bar. Em agosto de 2003, o primeiro mês dos novos horários dos bares, o número de homicídios caiu para oito, contra uma média mensal que já fora de 30 ou 40.
“Para chegar a um consenso entre os vereadores, precisamos de um ano de diálogo e debates, com muito corpo a corpo”, lembra Maridite. “Quase todos os vereadores têm amigos e cabos eleitorais que são donos de bares. Alguns vereadores estavam preocupados com a perda de empregos nos bares, outros com o impacto na opinião pública. Fizemos uma audiência pública na Câmara sobre o projeto da Lei Seca. Alguns donos de bares se colocaram a favor para reduzir a violência. Atingimos a unanimidade. Era uma virada histórica para Diadema”.
A implementação da “Lei Seca” exigia uma mobilização conjunta das instituições. Os fiscais da Prefeitura e a Guarda Civil eram escoltados nas madrugadas por unidades da PM, para evitar contestações e fazer com que a nova lei fosse cumprida. A coordenadora de Defesa Social de Diadema, Regina Miki, acompanhava a polícia e os fiscais, varando madrugadas, com o major da PM Ícaro Demétrio Santana, para checar os serviços e mostrar que a lei era para valer. Uma advogada corajosa, Regina recebia telefonemas anônimos que a ameaçavam de morte. Precisou esconder a família em outras cidades, mas não recuou. O Clube da Cidade, conhecido como bar “Fecha Nunca”, apontado como um local de muitos assassinatos, foi lacrado por causa da resistência do dono em se adequar à lei. Não voltou mais a abrir.
Alguns bares causavam problemas porque eram também os lugares do tráfico – algo que acontece inclusive em bairros mais nobres. O fechamento destes pontos afetou a venda das bocas. Com a fiscalização, o grosso das mortes passou a ocorrer antes das onze da noite, e em menor número. Pessoas dispostas a matar continuaram a viver na cidade, mas o poder público passou a diminuir as oportunidades de conflito.
Três anos depois das primeiras reuniões do Fórum, as polícias anunciavam o número mensal de homicídios mais baixo já registrado em Diadema: apenas cinco mortes em novembro de 2003. No final dos anos 80, chegou-se a presenciar, em um único mês, 90 assassinatos.
A morte do major Ícaro
As últimas reuniões do Fórum ofereceram uma advertência. Houve troca de chefes policiais no começo de 2003 por rotina das corporações. Os novos chefes deixaram de participar no Fórum, que se esvaziava aos poucos, quando entrava em seu quarto ano. As instituições públicas continuavam seu trabalho com zelo e empenho, mas, para usar a linguagem do futebol, as vitórias sucessivas faziam com que os jogadores passassem a “usar salto alto”. Recentemente, a Câmara de Vereadores votou por abrandar a “Lei Seca”, permitindo que os bares funcionem a 100 metros das escolas em vez dos 300 metros anteriores, apesar da campanha da Prefeitura contra o alcoolismo entre os adolescentes.
Em fevereiro de 2004, após um Fórum quase vazio, o major Ícaro Demétrio Santana, de 48 anos, um querido e respeitado servidor público, morria assassinado por bandidos em um tipo de execução que ele lutou muitos anos para reprimir em Diadema. Casado, pai de três filhos, o major voltava para sua casa vindo de um curso para oficiais em São Paulo, de ônibus, sozinho, fardado e com colete à prova de bala, quando foi pego na emboscada. Foi atingido por 10 tiros na cabeça, à queima roupa, dados por dois jovens em uma moto. Havia várias pessoas na rua quando o assassinato ocorreu, mas todas elas disseram à polícia que não viram nada. Então não houve testemunhas.
O major Ícaro foi peça chave nas mudanças ocorridas na cidade. Era o único no comando da Polícia Militar que morava na cidade. Trabalhou em Diadema por 15 anos. Passou por todas as fases críticas da violência local no comando de companhias em diferentes bairros.
Homem modesto e de poucas palavras, articulou cooperação entre as diferentes autoridades da cidade. Ele conhecia de longa data as lideranças políticas da cidade e participou ativamente no Fórum. Quando a “Lei Seca” foi aprovada, assumiu pessoalmente, junto com a Secretária de Defesa Social, Regina Miki, a fiscalização e implementação da lei, enfrentando com cordialidade e paciência a resistência dos donos de bares, que inicialmente se recusavam a baixar as portas depois das 23 horas. Nos últimos meses de sua vida, começou a viver complicações. O novo comando da Polícia Militar de Diadema havia transferido em 2003 o Major Ícaro para o Guarujá, abrindo contra ele um processo em que foi acusado de indisciplina, por negociar com comerciantes da cidade para criar um sopão que abrandaria a fome dos policiais durante a madrugada.
A morte do major Ícaro mostra que Diadema ainda tem um caminho para percorrer no controle da violência endêmica. O corpo de Ícaro foi velado, com muita cerimônia, no plenário da Câmara de Vereadores. Sua imagem dentro do caixão, rodeado de flores, com a cabeça enfaixada, chocava as autoridades presentes. Esta morte ainda não foi esclarecida.
Civilização
A queda de homicídios em Diadema, desde 1999, liderou um declínio geral das mortes violentas na Grande São Paulo. Pela diversidade demográfica da metrópole, que abarca tanto bairros antigos e consolidados quanto comunidades violentas da periferia, a taxa geral de homicídios na Grande São Paulo em 1999 (65 para cada cem mil habitantes) não era nem metade da taxa em Diadema (141). De 1999 até 2003, a taxa para a região metropolitana caiu em 26%, para 48 a cada cem mil, enquanto em Diadema a taxa caiu em 47%, quase duas vezes mais rapidamente.
Nos bairros violentos do município de São Paulo também houve quedas, mas não tão grandes quanto em Diadema. Porém, as taxas de homicídio da Grande São Paulo (48) e Diadema (74) ainda são muito altas, especialmente se as comparamos com cidades como Londres, Tóquio e Nova York, cujas taxas variam entre 2 e 7 para cem mil. Nosso pesquisador de segurança pública, Cel. José Vicente da Silva, observa que “um índice de homicídios de 40 para cem mil ainda é indecente e não justifica comemorações antes de chegar a 20. Civilizado é chegar abaixo de 10”.
Mas as recentes quedas de homicídios são fruto de um processo de civilização, ainda incompleto. Diadema representa bem esse processo. Representa a consolidação das comunidades na transição duma ocupação estilo “faroeste” para uma sociedade mais organizada. Este processo é complexo e envolve mudanças demográficas, novas formas de cooperação, ação mais efetiva dos governos municipal e estadual, aumentos no consumo popular, renovação da infra-estrutura e das oportunidades culturais, incorporação de novas tecnologias, ampliação da atividade econômica com muitas improvisações modestas mas importantes e, sobretudo, o esforço de muitas famílias para conquistar padrões de vida mais dignos.
Entre 1980 e 2003, a fecundidade das mulheres em Diadema caiu pela metade. As famílias agora são menores. Desde 2000, a faixa da população masculina entre 15 e 24 anos de idade, a mais exposta à violência, como vítimas e como agressores, está se reduzindo, como resultado de quedas anteriores de fecundidade e do impacto da violência. As gangues nos bairros violentos ficaram menores. “Muitos bandidos foram mortos brigando com outros bandidos, ou pela polícia, e muitos foram presos”, diz um policial. “Nas bocas de droga, a princípio, novos traficantes assumiam os postos dos chefes mortos e presos, mas depois essa substituição minguou, quando os novos chefes perceberam que esse caminho podia ser fatal”.
O tamanho menor das famílias permite investimento mais concentrado. Segundo uma pesquisa de nosso Instituto sobre consumo popular na periferia da Grande São Paulo, a principal forma de poupança dessas famílias é o investimento na melhoria de suas casas. Em menos de duas décadas, barracos viraram residências de dois ou três andares, no mesmo lote de antiga ocupação precária, graças a grandes esforços das famílias. As grandes empresas de manufatura e comércio estão se esforçando para vender na periferia, que forma um mercado de crescimento rápido. Em sua maioria, as casas já têm uma variedade de eletrodomésticos, como TVs, geladeiras, microondas, aparelhos de som e máquinas de lavar. Os supermercados e sacolões, proliferando com concorrência intensa, estão barateando o custo da comida. As despensas guardam uma variedade de produtos muito maior que há duas ou três décadas. Os sacolões são importantes, pois permitem às famílias de baixa renda comprar uma variedade de produtos, pagando por quilo a preços baratos. Os problemas de logística e comunicação nas classes populares foram reduzidos, com a proliferação de telefones celulares e de linhas fixas baratas. O transporte público melhorou com a renovação da frota de ônibus e a construção de dois grandes terminais intermunicipais em Diadema, em conexão rápida com o Metrô de São Paulo.
O espaço público exposto à violência está sendo reduzido. Como no resto da Grande São Paulo, restam poucas ruas em Diadema sem pavimentação e iluminação. Nos bairros populares, uma quarentena espontânea está surgindo, tendendo a isolar os malandros dos cidadãos que querem viver em paz e evitar problemas. Cada grupo reconhece e respeita o território do outro. Outra força que está reduzindo o espaço para violência é a expansão do comércio em todos os seus níveis, desde os novos supermercados até os vendedores ambulantes e as pequenas oficinas de consertos de carros e de eletrodomésticos e as vendas de doces e refrigerantes nas casas de bairro. Nas proximidades do Jardim Campanário, um terreno municipal abandonado era usado como um campo de execuções e um depósito de corpos e de carcaças de carros roubados. Agora esse espaço é ocupado pelo complexo poliesportivo do SESI, usado pelas famílias locais, e por altos prédios residenciais para famílias de classe média.
Um palco de pequenos crimes conhecido como camelódromo, uma praça no centro da cidade ocupada por ambulantes, foi removido para um prédio fechado batizado de Shopping Popular. Diadema agora tem 31 agências bancárias, e muitos outros negócios menores atuam como correspondentes que intermediam transações para os bancos. Nos bairros populares, a venda de água mineral está crescendo rapidamente, com promoções especiais. Estão se espalhando pizzarias, farmácias, lanchonetes de fast food, locadoras de vídeo, academias de ginástica e de artes marciais, escolas de idiomas, de computação e auto-escolas, agências de turismo, casas de umbanda, lojas de street e surf wear, instrumentos musicais e cabeleireiros. Também surgem prósperos pet shops. “As classes C, D e E gastam bastante em rações para seus bichos de estimação e em banhos e xampus para cachorros, a R$10 cada”, diz Manoel Gomes de Oliveira, 38, dono da loja Manecão.Pet.
Um importante estudo de urbanistas, São Paulo Metrópole (EDUSP/Imprensa Oficial, 2004), observa que o deslocamento de redes de consumo para a periferia “só poderá ser analisado como uma nova lógica da localização dos sistemas de consumo. A implantação de shoppings, supermercados, hipermercados e representantes de franquias de alimentação tipo fast food nas periferias metropolitanas são fenômenos recentes”.
Desde 2000 o número de estabelecimentos comerciais registrados em Diadema aumentou em 62%. As indústrias, principalmente pequenas e médias, cresceram em 28%. O emprego industrial cresceu 10,5% em 2004, o dobro do ritmo do resto do Estado, com a recuperação da indústria automobilística do ABCD. Além disso, a indústria está se diversificando, com crescimento do Pólo de Plásticos e do Pólo de Cosméticos.
Diadema abriga hoje 65 das 107 empresas de cosméticos que operam no Brasil. Elas empregam 8.300 funcionários em Diadema, mais outros 4.000, como fornecedores locais de plásticos, essências e embalagens. “Construímos nossa fábrica em 1982, quando ninguém queria vir aqui”, diz Silvestre de Resende, diretor comercial da Valmari, que emprega 88 pessoas. “A terra era barata. Diadema tem vantagens logísticas por ser próxima a São Paulo e a Santos, mas era muito violenta. Muitos assaltos. Um dia nosso motorista foi assassinado em frente à fabrica. Outro dia encontramos um cadáver perto de nossa porta. Agora a terra é mais cara, mas temos tranquilidade. Nossa empresa teve crescimento de 18% em volume de vendas, em 2004. Focalizamos as vendas nas classes A e B e nos profissionais que atendem essas faixas de renda. Porém, 80% das empresas aqui vendem para as classes de baixa renda, através de distribuidores”.
Este crescimento do comércio deve-se em grande parte à expansão rápida do crédito ao consumo no Brasil. Formou-se uma aliança entre as grandes cadeias de varejo e os bancos e financeiras. Agentes das financeiras ficam dentro de lojas grandes, aprovando créditos a juros mensais de 5% a 7%. Nos últimos dois anos, o volume de empréstimos pessoais cresceu em 79% e o crédito ao consumidor em 47%. De 1999 até 2003, a fatia de consumidores de baixa renda no mercado brasileiro de cartões de crédito aumentou de 10% para 21%. Novas modalidades de crédito estão sendo inventadas continuamente. Quando o valor devido é deduzido automaticamente de salários e aposentadorias, são cobrados juros de 2% ao mês. O boom de crédito permite à gente pobre consumir mais e investir no aprimoramento de suas casas.
Poderíamos facilmente exagerar os progressos de Diadema. As amplas avenidas centrais, com seus terminais de ônibus, supermercados, revendedoras de carros e lojas de fast food já não têm o aspecto de cidade pobre. Porém, como já observamos, as taxas de homicídios ainda são altas, apesar de sua redução nos anos recentes. A renda média mensal de chefes de família da cidade, no ano 2000, era de R$ 717, a metade da média do município de São Paulo. O efeito da estrutura política, do fortalecimento das instituições públicas e a expansão do comércio têm sido positivo, mostrando o quanto o povo valoriza a estabilidade. Diadema conseguiu mostrar que o problema dos homicídios pode ser reduzido em prazos curtos com um esforço político baseado em um consenso da comunidade e ação mais efetiva das autoridades. Quatro décadas após a explosão imigratória, Diadema não é mais uma cidade mergulhada em uma espiral de crises sem solução aparente. Ao contrário, está mostrando a força da democracia em um processo de civilização.
Publicação: 2002
Editor: Norman Gall
Editor assistente: Nilson Vieira Oliveira e Virgínia Rezende Montesino