Braudel Papers Nº 2 - O Estado e o mercado (1993)
Um diálogo com Jeffrey Sachs sobre reformas econômicas
*Por Norman Gall
1. O Estado e o mercado
Os anos 80 assistiram ao que parecia ser um triunfo do capitalismo e da democracia, o que produziu o consenso de que o progresso humano só pode se desenvolver com liberdade econômica e política. Regimes livremente eleitos substituíram ditaduras em muitos países da América Latina, no ex-império soviético e na África. Vários países iniciaram reformas econômicas, para eliminar distorções incapacitantes por meio da liberação das forças de mercado. Agora, barreiras institucionais, no Brasil e na Rússia, paralisam a política econômica. Esses dois países iniciaram o ano de 1993 sob ameaça de hiperinflação, ao mesmo tempo em que procuram alternativas para sistemas políticos fracassados. Um dos maiores defensores das reformas econômicas ao longo da década passada foi o professor Jeffrey Sachs, da Universidade de Harvard e membro fundador do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, que, desde 1985, tem dado assessoria a governos em crise de muitos países: Bolívia, Polônia, Rússia, Costa Rica, Eslovênia, Mongólia, Estônia e Peru. Cheio de juventude na aparência e no estilo, Sachs provoca intensas controvérsias políticas a respeito das soluções ortodoxas que propõe para a desorganização econômica de suas recomendações em favor da assistência financeira internacional e da redução de dívidas para apoiar reformas ortodoxas. Braudel Papers publica aqui um diálogo entre Sachs e Norman Gall, diretor-executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, sobre as perspectivas da reforma econômica como meio de reverter o empobrecimento e a desorganização.
GALL: Por que Brasil e Rússia estão ameaçados pela hiperinflação ao mesmo tempo? Existem causas subjacentes comuns?
SACHS: Tanto o Brasil como a Rússia vivem profundas crises de Estado. A hiperinflação ésempre produzida pelo colapso das finanças: grandes déficits públicos levando à instabilidade monetária. Por que se permitiu que o sistema financeiro atingisse um caos tão extremo? A resposta, quase sempre, está na incapacidade do sistema político de tratar das dificuldades que emergem do papel e do funcionamento das finanças públicas. Brasil e Rússia mostram as semelhanças entre países grandes, com sociedades diversificadas regionalmente, que tentam passar de um modelo falido de industrialização conduzida pelo estado para um modelo democrático viável e mais moderno de economia. Nos dois países, esta transformação está sendo realizada com algum sucesso, mas com grandes problemas. Tanto no Brasil como na Rússia, o Estado assumiu responsabilidades excessivas. Isso foi levado a uma dimensão extrema e insana na União Soviética, ondeelesetransformou numa monstruosidade totalitária. O Brasil também adotou um modelo de desenvolvimento econômico no qual o Estado controlava a economia em alto grau e dirigia muitas de suas unidades produtivas. Essa estratégia de desenvolvimento acabou por conduzir o país ao desastre econômico por duas razões. Primeiro, baseavase em idéias econômicas muito ingênuas. Segundo, o sistema tornou-se tão corrupto que o próprio estado se transformou mais em um veículo para a transferência de renda para grupos privilegiados, em um organismo parasita drenando a saúde e a riqueza da economia, do que em um agente efetivo de desenvolvimento.
GALL: Os preços ao consumidor subiram, em 1992, cerca de 2.000% na Rússia e 1.150% no Brasil. Ambos são nações-continente com 150 milhões de habitantes, tendo dificuldades em administrar problemas na escala de seus grandes territórios. Os dois países sofrem de inflação crônica, que corrói o padrão de vida, desorganiza as finanças públicas e enfraquece as instituições de assistência social. Nos dois, o poder político está nas mãos de um congresso que bloqueia as reformas que tentam pôr um fim à bancarrota do estado e à desorganização da economia. Regimes autoritários do passado, os militares no Brasil e os comunistas na Rússia, criaram a estrutura política dos parlamentos dos dois países, como parte de seu esforço para controlar a transição para sistemas mais liberais. Os líderes desses congressos temem a hiperinflação muito menos do que a perda de seus privilégios e de seu poder político, derivados de sistemas eleitorais deformados.
SACHS: A taxa de inflação da Rússia em 1992 foi mais alta do que a do Brasil, em parte, por causa da política deliberada de liberação dos preços na Rússia, que produziu uma inflação de 250% em um único mês, janeiro de 1993. No velho sistema soviético, o fornecimento de dinheiro tinha saído do controle. O déficit orçamentário, em 1991, equivalia a cerca de 25% do PIB. Até janeiro de 1992, a inflação tinha sido reprimida pelo controle de preços. O único lugar em que se via realmente a inflação alta era no mercado negro. A preços oficiais, todo o comércio estava em colapso. Ninguém mais estava vendendo nas redes oficiais. Havia um problema assustador: a incapacidade de levar os cereais às cidades para a fabricação do pão. Assim, o governo temia que, a menos que os preços fossem liberados, haveria ainda mais danos ao sistema, porque o dinheiro já não estava tendo mais nenhuma utilidade. Em janeiro de 1992, com a liberação dos preços, a inflação deu um salto, mas depois baixou de cerca de 40% em fevereiro para 30% em março, cerca de 20% em abril e 12% em maio. Mas, então, pressões políticas intensas levaram à confecção de mais dinheiro, para o financiamento de empresas que não conseguiam se sustentar com os preços novos. No início de 1993, a Rússia estava à beira da hiperinflação. Se a hiperinflação voltar, haverá uma devastação política na Rússia. Se o governo não conseguir fornecer um sistema monetário eficiente, um sistema de pagamentos que funcione, um mecanismo de comércio internacional e alguma estabilidade básica, as regiões da Rússia mais ricas em recursos vão acelerar seu movimento para abandonar a Federação Russa. Já estamos vendo pressões tremendas nas regiões petrolíferas e de mineração. Elas perguntam: “Por que deveríamos fazer parte daRússia?Queremos umestado independente. Queremos ficar livres do sistema de impostos. Queremosestabelecernossaprópria áreade comérciolivre eter nossos próprios impostos,e não pagar impostos para o governo central”.Aintegridadeterritorial daRússia está em perigo. Ela vai provavelmente entrar em colapso se o governo não puder fornecer os bens públicos mínimos que, supõe-se, qualquer estado deveria fornecer. Este é o teste de governabilidade. Isto poderia significar o fim da democracia, porque há grupos importantes na sociedade o Exército Vermelho e outros que usariam isso como um motivo para o retrocesso político. Portanto, evitar a hiperinflação não é uma questão de mera eficiência econômica, ou de padrão de vida, ou de reformar mais cedo ou mais tarde, ou de fornecer estabilidade para o investimento estrangeiro. É um teste de governabilidade. Se não se fizer frente a este teste, as novas instituições democráticas não sobreviverão.
GALL: Tenho certeza de que o presidente Boris Ieltsin compreende isto. Até que ponto o resto da comunidade política russa compreende?
SACHS: Há menos compreensão deste problema na Rússia do que em qualquer outro lugar em que já trabalhei. Os políticos populistas desdenham políticas que são essenciais para a sobrevivência de seu próprio país. Existem políticos assim no Brasil, no Peru, na Bolívia, na Argentina e em muitos outros lugares. Mas eu nunca vi tantos deles como na Rússia. Ao contrário do Brasil, que está discutindo a inflação já há décadas, a Rússia, durante 75 anos, não teve nenhuma noção do dinheiro como um objeto de política. O dinheiro era um instrumento técnico, basicamente subordinado ao plano central. Assim, as idéias de economia monetária, déficits orçamentários alimentando a inflação, impostos inflacionários, senhoriagem, instabilidade financeira, não estavam nem na agenda política nem na agenda intelectual. Elas estão na agenda agora porque o fracasso em realizar estas coisas levaria à completa ruptura até mesmodasmaisprimitivasdivisõesdotrabalhonaRússia. Eu vi isto acontecendo no outono de 1991. Não eram só as lojas que estavam vazias. As fábricas se recusavam a comerciar umas com as outras. Os cereais não estavam indo para as cidades. Quando uma fábrica de sapatos queria vender seu produto, dirigia seu caminhão até a fazenda estatal para permutar sapatos por carne, para poder alimentar seu operários. Isso é uma volta à economia primitiva de trocas que não poderia sustentar nem uma economia de renda per capita de USS 300, no nível da Índia ou da África sub-saariana, quanto mais a da Rússia, de renda per capita de US$1000 ou 2000. Era um grave perigo para a ordem social básica. Quem compreende isto? Keynes estava certo quando disse que um dos aspectos mais insidiosos da inflação era o de que ela pode demolir uma sociedade de um modo que nem um homem em um milhão pode compreender. O queele queria dizerera que,embora a dinâmica monetária pudesseser analisada, como ele fez de forma tão brilhante em seu tratado de 1923 sobre a reforma monetária, quase ninguém mais compreendia realmente o que estava acontecendo. É muito difícil explicar isso num ambiente altamente politizado e conturbado pela polêmica. A. Rússia é um país grande, um país diversificado. É difícil descobrir as alavancas e os mecanismos para pôr em prática políticas. É tão mais fácil atacar, é tão fácil culpar o ministro da economia. Trata-se de uma situação muito confusa, e muito perigosa.
GALL: Você acha que leitsin está perdendo poder político para os políticos da linha-dura?
SACHS: Como sua pergunta sugere, os problemas são mais políticos do que econômicos e sociais. Isto não é bem compreendido fora da Rússia. As pressões sobre Ieltsin não estão vindo das bases. Não houve nenhuma forma de insurreição contra as reformas econômicas. E a pressão também não veio do colapso econômico das reformas. A pressão vem do fato de que a liberalização política não foi levada longe o bastante. Embora seja o líder de um governo de reforma radical, o primeiro líder russo eleito em mil anos de história russa, Ieltsin ainda enfrenta grupos legislativos e uma burocracia que são remanescentes do sistema velho. Os políticos linha-dura não são capazes de obter vitória completa neste instante, em parte porque não refletem aquilo que a sociedade quer. Eles dizem que refletem, mas não é assim. Por outro lado, Ieltsin não tem sido capaz de obter grandes vitórias porque boa parte do establishment político está entrincheirado contra ele. O Congresso do Povo foi eleito sob o sistema de partido único e está cheio de soldados do partido. Este beco sem saída é perigoso para a Rússia, e é uma das razões pelas quais a estabilidade macro-econômica ainda não foi atingida. É um aviso de fracasso político no futuro. O modo de resolver o problema político não é comprometer as reformas, mas levar adiante a democratização, começando com eleições locais, que conseguiriam desfazer grande parte do poder do sistema da velha “nomenklatura”. Então, deveriam ser realizadas eleições nacionais para um novo poder legislativo. Uma democratização mais ampla vai criar incertezas de outros tipos. Mas é o meio de resolver o paradoxo político de hoje. O beco sem saída político aumentou Os riscos de hiperinflação. Os políticos linhadura agora concedem crédito fácil para o complexo industrial-militar. O fornecimento de dinheiro está crescendo em cerca de 30% ao mês, impulsionando um grande ressurgimento da inflação. A hiperinflaçao fomenta mais instabilidade política e social. A sociedade aceita a necessidade de mudanças muito mais do que o Congresso do Povo.O meio desobrepujaresta resistência agora é exercer políticas econômicas responsáveis e sustenta-las por meio de mais movimentos no sentido da democratização política.
GALL: Há grandes diferenças entre o Brasil e a Rússia. A Rússia continua a ser uma grande potência, como foi durante os últimos três séculos, enquanto o papel do Brasil na economia e na estrutura do poder mundial, papel que tem sua.. raízes no colonialismo europeu, permanece marginal. O sistema educacional russo produziu uni grande excedente de especialistas de alto nível, enquanto o Brasil sofre com a desesperante escassez de material humano treinado. A despeito de enormes distorções fiscais, o Brasil continua a sei uma economia de mercado em funcionamento, com instituições financeiras sofisticadas que, num certo sentido, trabalharam de modo a manter ter o país unido apesar dessas transferência fiscais insanas. Entretanto, a Rússia e outras repúblicas da ex-União Soviética enfrentam a assustadora tarefa de criar mercados modernos e, ao mesmo tempo, desmantelar as burocracias parasitas que administram o sistema estatal de produção, distribuição e crédito, que têm causado esmagadoras perdas no bem-estar social. Agora podemos ver as dificuldades dos países grandes em administrar problemas de grande escala. Que reformas econômicas o senhor teria em vista para um país grande como o Brasil?
SACHS: Um ponto óbvio é que as reformas em países grandes são muito mais complexas do que em países pequenos. Há uma razão básica para isto. Em países pequenos, a reforma pode ser introduzida de dois modos. Uma das maneiras mais frequentes de fazer reformas bem-sucedidas em países pequenos é, simplesmente, abrir o país para o ambiente internacional, que funciona como a chave que organiza o capital da economia. Comércio internacional, intercâmbio de tecnologia, comércio de capital são o maior motor de conversão econômica para países mais pobres se emparelharem com os mais ricos. Mas em países como O Brasil ou a Rússia, embora o comércio internacional possa ter seu papel, ele não será a chave da mudança econômica. O segundo ponto a respeito de países grandes e pequenos é que Os pequenos importam idéias muito mais prontamente do que os grandes. Introduzir idéias dentro de um país grande como o Brasil é muito mais difícil. O Brasil é o país da América Latina que menos tem participado da troca internacional de idéias a respeito do setor estatal e privado, e da natureza da economia política, nos últimos 15 anos. As idéias a respeito de liberalização e privatização têm chegado ao Brasil de modo mais intermitente. Ainda existem líderes no Brasil que defendem políticas velhas, defeituosas e fracassadas. Isto é menos provável de acontecer em países pequenos. É difícil fornecer um projeto geral, porque o Brasil tem muitos problemas diferentes. O modelo de industrialização conduzida pelo Estado fracassou, de forma que as idéias básicas de liberalização e privatização são muito relevantes para o Brasil. Durante décadas, o orçamento público foi visto como um saco sem fundo para os interesses políticos. O sistema político levou à bancarrota do Estado e à sua incapacidade de fazer frente às necessidades sociais básicas. O Brasil precisa de um sistema político democrático, ainda que proteja o fisco contra interesses especiais, sejam setoriais, classistas ou regionais. O Brasil possui uma das distribuições de renda mais desiguais do mundo. Não existe remédio a curto ou médio prazo. As soluções revolucionárias são ainda mais desastrosas. A má distribuição de renda torna mais premente a necessidade de desenvolver adequadamente um sistema educacional, um sistema de saúde e a infra-estrutura. Mas o governo está falido e incapaz de administrar. Uma idéia a que todos os países grandes acabam chegando é a da necessidade de descentralizar. Um federalismo fiscal melhor deixa muitas dessas tarefas para o nível local. Países grandes não podem mais funcionar a partir do centro. O sucesso da China, em grande parte, veio da descentralização. Uma chave para o sucesso da Rússia na reforma econômica e democrática será a descentralização do sistema político e a transferência da responsabilidade fiscal do governo central para as diversas regiões. Isto também pode ser importante no Brasil, porque o governo central não pode arcar com a complexidade dos problemas atuais, nem evitar as pressões políticas que exigem gasto estatal, na situação presente.
GALL: Em vários países, entre eles o Brasil, o processo de modernização dos últimos séculos está sendo minado pela inabilidade de administrar problemas de grande escala. A descentralização e a privatização significam um esforço para eliminar ou reduzir esses problemas?
SACHS: Certamente. Muitas das idéias de liberalizar e privatizar economias são, na verdade, mecanismos de sobrevivência para o estado, como instituição política. Grande parte daquilo que está envolvido nas reformas atuais é a proteção do estado do auto-abuso destrutivo. Uma das principais razões para privatizar ou liberalizar uma economia é, simplesmente, retirar o governo da linha de fogo política por responsabilidades que ele não pode administrar. Ele não pode lidar com elas administrativa, técnica ou politicamente. Um estado democrático não pode assumir a responsabilidade pela administração das milhões de interações que ocorrem numa sociedade. Quando um governo democrático é colocado no centro de um conflito, ele tende a responder abusando das finanças públicas, disfarçando os problemas a curto prazo mas levando ao colapso estatal definitivo a longo prazo. A reforma econômica radicalé um meio radical de tentar capacitar o estado novamente para realizar suas funções essenciais, fornecendo estabilidade física interna básica, pondo fim à violência física, fornecendo ordem pública básica, um sistema monetário que funcione e um grupo de instituições sociais que evite o golpe de estado, a onda de fome e os desastres na saúde pública. Os desastres econômicos no Brasil e na Rússia aconteceram em parte porque o estado estava esmagado por mil outras tarefas que ele simplesmente não tem como administrar. Desligar-se dessas tarefas, ficar livre delas tão rápido quanto possível, não é algo motivado apenase principalmente pela teoria econômica, mas pela necessidade de um modelo político eficiente no qual o estado seja capaz de proporcionar atenção suficiente às suas funções essenciais, de modo que essas necessidades básicas possam ser cumpridas à altura.
GALL: Observando as economias altamente inflacionadas da América Latina e vendo muitos truques e fiascos monetários, tem-se a tentação de dizer que a política monetária não existe. A única política que conta é a política fiscal. A Alemanha, os Estados Unidos e a Itália, entre outros países ricos, têm problemas fiscais muito sérios. Acho que a política monetária foi usada nos EUA no início dos anos 80 para mascarar e amortecer o impacto de uma má política fiscal. O que você pensa desta afirmação?
SACHS: Há uma idéia importante por traz disso. A coisa mais difícil de administrar numa sociedade democrática é a política fiscal. Há pressões políticas e institucionais muito profundas que levam a uma flagrante má administração fiscal no Brasil. Entretanto, eu não iria tão longe quanto você. No plano técnico e administrativo, há certamente uma distinção entre política monetária e fiscal. É possível passar anos com uma política monetária severa e uma política fiscal frouxa. Os EUA fizeram isso na década de 80. Entretanto, elas obviamente estão ligadas, ao longo de vários anos, em todos os países. Elas estão, certamente, ligadas até mesmo a curto prazo, em muitos países em desenvolvimento. O ponto crítico é que, nos países em desenvolvimento, há uma capacidade muito limitada de financiar déficits orçamentários sem o uso de instrumentos monetários. Em alguns países, o único meio de financiar déficits orçamentários é, simplesmente, tomar dinheiro emprestadodobancocentral,ou do sistema bancário. Em outros lugares, pode haver outras maneiras de financiar o déficit usando instrumentos de débito de prazo muito curto. Mesmo nesse caso, esses instrumentos de débito são como que um“quase” dinheiro.Isso levanta muitas questões técnicas. Sua proposição subjacente a de que os problemas profundos tendem a ser problemas fiscais e que a política monetária não pode resolver problemas fiscais é absolutamente correta.
GALL: A distribuição de renda é muito discutida no Brasil, e em vários outros países. Na campanha eleitoral de 1992 nos EUA, os experts falaram de um recuo político e de uma revolta popular contra a concentração de renda que ocorreu durante as anos de Reagan e Bush. Eu me pergunto se as limitações administrativas dos governos permitem que eles influenciem a distribuição de renda sem criar distorções na atividade econômica que se mostrem muito custosas mais tarde.
SACHS: É uma questão complicada. Nos anos 80, as desigualdades de renda ficaram piores nos EUA. Grupos de renda mais alta tiveram maio’ crescimento econômico e melhora de seu padrão de vida. Os grupos mais pobres sofreram perdas na renda real. Quando procuramos as causas, não encontramos respostas satisfatórias. Entretanto, pode-se dizer que essas mudanças refletiram mais as forças de mercado do que a política governamental. Esta é uma visão polêmica, porque o governo Reagan foi intencional e provocativamente contra quaisquer tipos de apoio à renda dos pobres numa década em que a situação dos pobres piorou. Pode-se sentir a tentação de culpar as políticas de Reagan, mas as tendências parecem mais profundas do que isso. Elas refletem o fato de o mercado ter se voltado novamente para a educação, com os salários dos trabalhadores especializados crescendo muito mais depressa do que os dos não-especializados. A demanda por trabalhadores treinados cresce mais depressa do que a demanda por trabalhadores não-especializados, ampliando o abismo entre eles. Isso parece ser um processo independente das políticas governamentais. Agora, eu não desejaria deixar o governo Reagan e sua negligência fora do panorama. O governo defato tem uma responsabilidadeimportante nisso, mas de um tipo limitado. Essa responsabilidade é a de fornecer o tipo de educação e assistência médica que dê uma chance aos grupos de renda mais baixa de desenvolverem as habilidades e o capital humano que ostornem capazes de tirar vantagem da demanda por mão-de-obra especializada. Nisso, a política dos EUA foi inadequada nos últimos 10 anos. A assistência médica preventiva das cidades poderia ser muito melhorada. Nós teríamos um grande retorno social dando mais assistência pré-natal para evitar partos mal-sucedidos, que têm um efeito devastador sobre a renda da vida inteira das famílias pobres, que então requerem grandes desembolsos do orçamento do resto da sociedade durante décadas no futuro. Esses saques sobre o futuro poderiam ser reduzidos por meio de um apoio bem planejado e generoso para as mulheres grávidas pobres. Não existe dúvida de que o aumento das oportunidades de educação na pré-escola, o chamado Head Start Program nos EUA, fornece oportunidades reais de ajudar Os pobres a entrar na trilha da educação e habilidades aprimoradas. Tudo isso foi negligenciado. Uma maior atenção a esses aspectos não teria superado as tendências dos anos 80, mas teria dado uma segurança maior de que, a longo prazo, as chances de renda dos pobres dependeriam mais de suas opções do que das circunstâncias da vicia. Ademais, uma atenção maior à saúde e à educação ajudaria a manter nossa sociedade unida. Esta é a crise que os EUA estão experimentando agora em sua política. A negligência em relação à desigualdade levou a uma percepção generalizada do crescente conflito de classes em nossa sociedade. Divisões que sempre existiram ficaram piores. A sociedade deve aprender a cooperar. Nossos líderes políticos devem continuar a nos dizer que somos todos partes da mesma sociedade, e que nós nos beneficiamos enormemente quando todos os membros da sociedade partilham dos lucros da atividade econômica. A idéia de que isto pode ser negligenciado pelo estado, o que foi a ideologia de grande parte do governo Reagan, é desastrosa. Ela gerou um cinismo que é perigoso para nossa estabilidade política.
GALL: O que os brasileiros podem fazer a respeito do seu problema de distribuição de renda, que é muito pior do que o dos EUA?
SACHS: A desigualdade de renda no Brasil é, talvez, a pior do mundo: a fatia de renda que vai para os 10% mais ricoséigual à que vai para os 40% mais pobres. Esta é uma das causas da contínua incapacidade da sociedade brasileira de atingir um consenso básico na direção do desenvolvimento social e econômico. Não há solução milagrosa. A redistribuição direta em larga escala seria desastrosa. Embora os revolucionários possam sonhar em superar essas divisões por meios radicais, a história mostra que tais métodos não somente falham como também causam dano às gerações futuras. Os populistas sonham em fazer isso imprimindo dinheiro para dar aos pobres. Esta aventura está condenada ao fracasso. Ela cria tais instabilidades sociais e políticas que os recuos e incertezas criadas pelo populismo causam mais dano aos pobres do que qualquer ajuda a curto prazo que eles possam conseguir deste modo. O que os brasileiros têm de fazer é lidar com a desigualdade por meio de políticas de longo prazo do tipo que mencionei. Desenvolver as habilidades dos pobres é única solução duradoura.
GALL: E se não houver pessoas suficientes para ensinar aos pobres? Este é o problema clássico da América Latina. Pode nem mesmo ser um problema de recursos monetários. Na Europa, o sistema educacional capaz de arregimentar uma burocracia teve seu princípio no século 12. Foi somente no final do século 19 que uma massa crítica de habilidades foi formada na Europa, de modo a permitir que a Inglaterra, o país mais avançado da Europa, transformasse a educação pública universal em lei. Agora, na América Latina, eles estão tentando fazer isto em uma única geração, com fracassos tremendos. Acho que este é um problema desesperador, mas não é tão fácil investir na produção de habilidade quando existe uma grande escassez de habilidade tanto no lado da produção quanto do lado da educação. A Europa Oriental e a ex-União Soviética não enfrentam um problema deste tipo.
SACHS: É um fenômeno totalmente diferente, por causa da alfabetização praticamente universale dos níveis muito altos de educação na Rússia. Não há nenhuma resposta miraculosa. Mas, se o governo abandonasse o negócio de administrar indústrias, abandonasse todas as coisas com as quais se envolveu de modo desnecessário, decidindo se alguém pode comprar um computador no Brasil e assim por diante, ele poderia fazer muito mais em favor do desenvolvimento da educação. Eu orientei recentemente a tese de doutorado de um economista colombiano, Juan Luis Londoño, que estudou aquilo que parece ser uma poderosa tendência no sentido de melhorar a distribuição de renda na Colômbia ao longo dos últimos 40 anos. Eleestudou as possíveis causas desta tendência histórica na Colômbia. Parece claro agora que o ponto de virada na distribuição de renda da Colômbia aconteceu no final dos anos 50 e início dos 60, quando o governo colombiano fez grandesinvestimentos na educação, primária, uma parte fundamental da estratégia de desenvolvimento do país. Portanto, não deveríamos nos desesperar. Mesmo na América Latina, alguns países estio mais avançados neste caminho. Tenho certeza de que o Brasil, a despeito de suas grandes dificuldades, poderia fazer mais do que vem fazendo.
GALL: Ao discutir justiça social, pode-se usar um termo bastante pesado, que é “parasitismo”. Poucas pessoas pagam impostos ou taxas adequadas pelos serviços públicos que recebem. Não são apenas os ricos que conseguem acordos especiais com o governo, como taxas de câmbio favoráveis, ou taxas de juros mais baixas, ou subsídios especiais. No Brasil, metade das pessoas que recebe pensão por aposentadoria tem menos de 50 anos de idade. O sistema de previdência social está falido e, portanto, não consegue pagar pensões decentes nem executar suas obrigações médicas porque muitas pessoas médicos, pensionistas, especuladores de imóveis, empresários contratantes e políticos estão vivendo de modo ilegítimo como parasitas dos fundos da previdência social.
SACHS: Na Polônia, eu fui muitas vezes atacado por não me preocupar com o custo social das reformas. O fato é que, em muitas áreas, a assim chamada rede de previdência social está estrangulando a economia. Algumas partes da Polônia possuem as taxas mais altas de pensionistas incapacitados em relação à população total da Europa inteira. Olhando de modo cuidadoso para a situação, muitos deles não estão incapacitados. Eles estão sob cuidado público por causa da política de apadrinhamento em regiões locais. O sistema inteiro funcionava de modo corrupto e abusivo. Em muitas sociedades, não só no Brasil, o tesouro tem sido atacado por direitos adquiridos que drenam a vitalidade do setor público. Vê-se isso na Itália de hoje, que está em crise profunda por causa de décadas de política de clientelismo, com montes de aposentados jovens, pessoas supostamente incapacitadas, tal como na Polônia e no Brasil. É uma coisa profundamente enraizada, e muito difícil de mudar sem uma liderança executiva forte, deficiência que tem sido a praga do Brasil nos anos recentes.
GALL: Todos falam a respeito dos custos sociais de se deter a inflação. A Bolívia é muito mais pobre do que o Brasil. O que aconteceu lá?
SACHS: Quando cheguei na Bolívia pela primeira vez, em 1985, a inflação, anualizada, tinha sido de 60.000%, ao longo dos seis meses anteriores. Dei uma conferência para um grupo de empresários, salientando que aquela não era apenas a sétima inflação mais alta da história do mundo, mas também uma inflação que, com medidas apropriadas, poderia ser detida rapidamente, como acontece com a maior parte das hiperinflações. Alguém no auditório perguntou: “Mas e quanto aos custos sociais devastadores de se fazer isto?” Eu fiquei estupefato com essa pergunta. E fiquei estupefato porque os custos sociais de não fazê-lo eram imensos. Aquilo era realmente um caso de sobrevivência, no sentido mais literal do termo. Além disso, muito do que impelia a hiperinflação naquele tempo era a patifaria. Não eram os pobres que estavam se beneficiando da hiperinflação, mas aqueles que sabiam como usar o sistema, Os que conseguiam empréstimos baratos para construir casas, e terminavam pagando uma bagatela pelos dólaresemprestados, os queeram capazes de conseguir acesso favorável à moeda estrangeira, ou aqueles que conseguiam comprar a farinha que o governo estava vendendo a preços baixos sob a premissa de subsidiar o pão. Elesentão exportavam a farinha a preços de mercado internacional, para os países vizinhos, capturando deste modo uma quantidade enorme de renda que fomentava toda a cunhagemdemoeda alimentando a hiperinflação que era necessária pôr causa dos imensos déficits orçamentários, abertos pelos próprios subsídios deste tipo. Assim, ser interrogado a respeito dos custos sociais de conter a inflação, em vez de a respeito da devastação social total da inflação galopante, representava uma incompreensão aterradora das circunstâncias em que eles estavam vivendo.
GALL: O que está acontecendo na Bolívia agora?
SACHS: A Bolívia ainda é um país muito pobre, mas sua economia e seu sistema político estão muito mais fortes agora, como resultado da estabilidade econômica e das políticas saudáveis. O país tem se beneficiado enormemente, nos anos recentes, do fato de ter-se tornado uma democracia consolidada, com um consenso básico para uma economia de mercado aberta eintegrada com o resto do mundo, com uni sistema financeiro transparente e administrado de modo responsável, e um governo de tamanho modesto administrado de modo transparente e profissional. A Bolívia está agora em seu sexto ano de inflação baixa, cerca de 10% este ano, e em seu sexto ano de crescimento econômico. A renda per capita tem crescido cerca de 2% ao ano. O crescimento geral do PIB é de cerca de 4% ao ano. A Bolívia não é nenhum tigre asiático. Sua taxa de crescimento já está dentro de sua tendência de longo prazo, mas com perspectivas reais de aumento no futuro. O país agora tem um governo sério e um sistema político reformado, e uma boa perspectiva de desenvolvimento democrático e constitucionalismo prolongados. A Bolívia, formalmente, tem um sistema presidencialista, mas sabiamente avançou para uma espécie de sistema quaseparlamentarista a partir de 1985. Presidentes sucessivos viram que realmente não podem governar sozinhos, que precisam de uma maioria atuante no congresso. Assim, dois governos formaram uma coalizão para conseguir essa maioria atuante. Isso começou em 1985, quando o presidente Vitor Paz Estenssoro (1985-89) fez uma aliança com o general Hugo Banzer, o que permitiu a execução do programa de estabilização. O presidente. Jaime Paz Zamora (1989-93) também governou em coalizão com Banzer, que vai concorrer à presidência com apoio de Zamora este ano. Os bolivianos estão na expectativa de outra aliança depois das eleições gerais de junho deste ano. Portanto, o sistema político está funcionando com normas parlamentaristas agora. O presidente forma uma maioria atuante no congresso e escolhe seu gabinete a partir dela. Os bolivianos têm muita esperança de que essa estabilidade democrática parlamentar-presidencialista será mantida.
GALL: A certa altura, pareceu que Itamar Franco, estava tateando em direção a este tipo de sistema quase parlamentarista.
SACHS: Os bolivianos como que o descobriram, no sentido de que ele não está prescrito na Constituição e que eles têm pouca experiência histórica com a democracia. Devo acrescentar que um país como a Bolívia somente vai conseguir um boom econômico quando seus vizinhos estiverem também saudáveis. O fator mais depressivo para as perspectivas da Bolívia a médio prazo é a desordem prolongada no Brasil.
GALL: Alguns brasileiros respeitáveis dizem que a única maneira de romper o impasse político e reorganizar o sistema é deixar que a hiperinflação aconteça.
SACHS: Isso é muito perigoso. É como deixar seu filho de quatro anos brincar nomeio de uma ruamovimentada para que ele aprenda as regras do tráfego.
GALL: Ao longo dos últimos dois ou três séculos, os melhoramentos no bem-estar humano e na expectativa de vida têm estado associados ao investimento crescente na infraestrutura, especialmente em transportes, comunicações, educação e sistemas de fornecimento de água e esgotos. Em alguns países, a infraestrutura está caminhando para a destruição. Por que o investimento público está estagnado ou em declínio hoje, tanto nos países ricos como nos pobres?
SACHS: Em muitos países, uma crise fiscal profunda ataca governos já atormentados por grandes déficits orçamentários. Para sustentar esses déficits, eles assumiram pesados débitos. Muitos desses déficits vêm da bancarrota de empresas estatais, de aumentos mal feitos nos gastos sociais e de um grande crescimento do próprio Estado. Por causa desses grandes problemas orçamentários, os governos de todo o mundo cortaram acentuadamente o investimento em infraestrutura, ou seja, em transportes, comunicações, energia, saúde pública. Esses cortes foram danosos para o bemestar público. Em alguns países, como os EUA, este problema não vem do gasto excessivo do Estado, mas da sub-taxação do estado, comparada com o nível de serviços públicos normais que os cidadãos norteamericanos gostariam de manter. Em outros lugares, os países tentaram manter os gastos públicos acima dos níveis sustentáveis a longo prazo. Em ambos os casos, o que se tem é um enfraquecimento do investimento de infraestrutura. Os economistas que examinaram isso nos EUA, aonde este problema tem sido estudado de modo mais acurado, acreditam que o declínio dos gastos em investimentos públicos nos EUA é uma das causas significativas do baixo crescimento econômico dos últimos 10 ou 15 anos. Na América Latina, Europa Oriental e Rússia, mesmo sem cálculos tão cuidadosos, está claro que o colapso dos gastos em infraestrutura não está apenas deprimindo o crescimento econômico, mas também baixando os padrões de vida da população.
GALL: Quer você fale de subtaxação ou excesso de gastos, você está falando de uma grande transferência do investimento para o gasto, o que deteriora a capacidade de alguns países de administrar sociedades complexas. Isto afeta mais os países pobres do que os ricos, porque suas reservas de capital funcional são menores. Você vê uma consciência crescente deste problema? Há um movimento na direção de maior investimento público ou de mais descapitalização antes que este problema seja enfrentado?
SACHS: A primeira fase de reconhecimento disto em todo o mundo veio quando os governos foram golpeados pelas conseqüências de profundos desequilíbrios orçamentários: principalmente hiperinflação ou inflação alta, e dificuldade com débitos. A primeira reação foi um corte mais ou menos generalizado nos gastos governamentais. Uma tutelada muito crua, que é, muitas vezes, a única coisa que pode ser feita em tempo de crise. Alguns cortes têm seus méritos e outros são muito custosos a longo prazo. Essa primeira fase de reação pode durar de cinco a dez anos. Leva talvez mais de uma década, para que se possa reorientar os gastos, tirando-os de atividades que não podem ser administradas e os direcionando para necessidades que têm que ser enfrentadas. Este processo de mudança estrutural profunda está em andamento neste instante. Nenhum país em reforma da América Latina, da Europa Oriental ou da ex-URSS já completou este processo, de ir além dos cortes no Estado para tornar seu papel mais administrável e eficiente. Déficits de orçamento estão ficando sob controle em grande parte da América Latina e da Europa Oriental. Os governos estão tentando se livrar do vasto espectro de atividades de produção e de intervenção na economia industrial que eles assumiram durante 40 anos. Isto é crucial para a adoção das novas regras. Enquanto este movimento para se livrar das velhas atividades está ocorrendo, o progresso em restaurar a prioridade da infraestrutura básica está apenas começando. Ele está acontecendo de dois modos diferentes. Os governos estão abrindo muitas dessas áreas tradicionais de infraestrutura para a atividade privada, onde o capital está disponível. Portanto, a privatização de atividades antes realizadas pelo estado, não apenas na produção, mas também na prestação de serviços, em assistência médica, até mesmo em áreas de previdência social, são modos pelos quais o Estado pode superar suas capacidades limitadas. Vê-se hoje companhias telefônicas sendo privatizadas em toda a América Latina. Em segundo lugar, depois da primeira fase de contenção de despesas, alguns governos estão começando a colocar mais dinheiro na saúde pública e em outras áreas essenciais. Mas a reafirma dessas áreas e o financiamento adequado para elas na realidade ainda não ocorreu na maioria dos países em reforma.
GALL: Quais são os exemplos mais chocantes de declínio de infraestrutura que você tem visto na Europa Oriental e na ex-URSS?
SACHS: A degradação da assistência médica e da proteção ambiental na Europa Oriental e na ex-URSS levou a um desastre na saúde pública. O sistema hospitalar da Rússia entrou em colapso. Com alguma assistência de emergência, ao menos os cuidados mínimos podem ser mantidos. A Rússia esteve à beira de ficar sem insulina no início de 1992. Muitos hospitais estão sem os suprimentos básicos.
GALL: Na Venezuela, os hospitais estão sendo fechados por falta de água, assim como muitos da ex-URSS. Em Caracas, uma das maiores maternidades do mundo foi fechada, depois de anos de má administração e falta de manutenção nos equipamentos. As incubadoras para prematuros estavam empilhadas no subsolo e não podiam ser consertadas por causa de simples problemas administrativos. Não conseguiam fazer exames de laboratório porque os plugues de algumas máquinas tinham sido roubados e ninguém tinha colocado outros. O colapso do sistema de saúde pública na América Latina pode estar uma década atrás do da ex-URSS, mas está no mesmo caminho. Tanto na Europa Oriental como na ex-URSS, as taxas de mortalidade adulta e infantil têm crescido muito nas últimas décadas. Nosso trabalho no Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial desenvolve a idéia de que uma grande mudança está ocorrendo, de uma economia política de direitos adquiridos, para uma economia política de sobrevivência. Ainda não entendemos perfeitamente o que isto significa, mas sabemos que desdobramentos humanos só podem vir desta mudança com um aumento no nível e na intensidade da cooperação. Estão em perigo grandes avanços na sobrevivência de indivíduos e comunidades, que a humanidade obteve nos últimos dois séculos. Estarão os instintos de sobrevivência sendo despertados ?
SACHS: Sim. Alguns observadores sustentam que Chernobyl foi o maior evento singular a abrir o sistema e levar ao fim do comunismo. Uma catástrofe ambiental ativou o senso de sobrevivência. Quando eu comecei a viajar pela ex-URSS e conversar com economistas jovens, em 1989 e 1990, eles estavam preocupados com a possibilidade de que o leite com, o qual alimentavam suas crianças estivesse envenenado. Isso era devastador psicologicamente. A mais urgente das forças que levou ao fim do comunismo foi a percepção generalizada entre as pessoas, uma percepção bastante acurada, de que o sistema as estava destruindo. Desafortunadamente, o sistema antigo tinha grande força, mesmo depois das mudanças políticas. As grandes lutas políticas na Rússia dehoje continuama ser comosindustrialistasquequerem manter esta máquina industrial em funcionamento, sem levar em consideração o que ela está produzindo, por que está produzindo e que tipo de estrago está fazendo. Eles agora sofrem a oposição dos reformistas que dizem que nossa meta não pode mais ser a industrialização tão rápida quanto possível e a qualquer custo. Há um grande drama em tudo isto. Mas também quero ressaltar o lado positivo. A história do pós-guerra mostra que uma combinação de sanidade macroeconômica e integração com os mercados mundiais é uma receita poderosa para reverter o declínio econômico e para retomar o crescimento. Estes são princípios simples. Sua simplicidade é uma das razões pelas quais são tão ferozmente atacados. Mas desfizeram um bem enorme aos países que foram capazes de sustentar essa rota por um longo período de tempo. Na Europa Ocidental, havia países politicamente isolados do fluxo principal, como a Espanha, que se atrasou em relação ao resto da Europa e foi mantida à margem das tendências econômicas, políticas e culturais por Franco, pelo menos na primeira metade deseu regime, até o final dos anos 50. A Espanha começou a se ligar novamente à Europa nos anos 60. A reintegração da Espanha acelerou-se nas duas décadas seguintes, depois da democratização e da união com a Comunidade Européia. Isso levou a uma explosão de criatividade, criação de riqueza e aperfeiçoamento da infraestrutura e das condições de vida. Tanto a Espanha como a Polônia tinham os mesmos níveis de renda per capita em 1955. Ambos eram países católicos periféricos. Por causa da Guerra Civil, na Espanha, e da ocupação, na Polônia, os dois países ficaram à margem do fluxo central da Europa Ocidental depois de terem chegado a um nível semelhante de industrialização e desenvolvimento precoces. Agora, a renda per capita da Espanha é quatro vezes maior que a da Polônia.
GALL: Você não diria que um período construtivo de incubação ocorreu na Espanha, em termos de ethos de trabalho, durante a ditadura de Franco ?
SACHS: Franco começou a abertura em 1959, trazendo uma mudança de direção fundamental. Em 1962, a Espanha uniu-se à Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento, a comunidade dos países industriais, com sede em Paris. Nos anos 70, a Espanha, mesmo sob Franco, já estava começando seu crescimento, conduzido pelas exportações. Sempre que ocorrem resultadoseconômicos positivos, há um período de incubação extremamente importante. Na Polônia, chegou a haver um tipo de período de incubação depois de 1980, mesmo durante o período de lei marcial. A lei marcial realmente marcou o fim do domínio comunista tradicional na Polônia, embora não tenha posto um fim a algumas das piores características do socialismo e do autoritarismo. O nascimento do Solidariedade, no início dos anos 80,e a substituição da velha estrutura comunista pela lei marcial, abriram espaço para pequenos negócios, para ativistas do Solidariedade que abandonaram o setor oficial e iniciaram suas próprias atividades. Essas pessoas começaram a viajar, a debater, a publicar e a estabelecer suas próprias firmas. Esta fase não teve o vigor do período de incubação da Espanha, mas foi algo de real, que deu à Polônia um ponto de partida. Jan KrzysztofBielecki,ofuturoprimeiro-ministroreformista, foi demitido de seu trabalho porque era ativista do Solidariedade. Fundou então sua própria empresa de transportes e, depois, sua própria firma de consultoria financeira, em meados dos anos 80. Ele provou o sabor dos mercados livres e tornou-se um defensor rígido das reformas liberalizantes e da integração com o Ocidente. A incubação é importante. Talvez a minha maior frustração seja minha incapacidade de transmitir e explicar isto de maneira geral. Sou freqüentemente mal entendido e criticado por defender reformas que, quando executadas, não levam a resultados imediatos. Grande parte do que tento fazer é explicar que uma coisa é estabelecer uma estrutura econômica e jurídica decente, mas outra, muito diferente, é fazer com que ela libere plenamente seus frutos. Isto precisa de muitos anos de funcionamento sob o novo sistema, sob novas relações políticas, econômicas e sociais.
GALL: O Brasil tem atravessado um período de incubação como o que o senhor descreveu para o Espanha e Polônia?
SACHS: Desde meados dos anos 70, o Brasil fracassou em manter um curso firme dentro de qualquer política econômica consistente, e fracassou na estabilização e na abertura da economia. O país tentou fazer isso, sem muito entusiasmo, algumas poucas vezes. Mas, em qualquer ocasião em que havia uma desaceleração da produção ou um aumento no desemprego, o pior instinto do Brasil decidia que era hora de destituir o ministro da economia, e de colocar no cargo um ministro novo com um novo “milagre”. O Brasil tem sido o país mais famoso do mundo por tentar realizar um milagre econômico em vez de persistir na difícil rota da regularidade. Isto teve como resultado cerca de 20 anos de mau desempenho econômico.
GALL: Mas o Brasil tinha a taxa de crescimento mais alta do mundo nos anos 70.
SACHS: A partir de meados dos anos 70, pode-se ver o fracasso do Brasil em se adaptar aos preços mais altos do petróleo no mercado mundial, ao crescente déficit no orçamento, à queda na taxa de poupança nacional, à dívida pública crescente e ao aumento da inflação. A irresponsabilidade na política econômica brasileira começou em 1973-74. Entre 1971 e 1979, ainda parecia que o velho modelo estava funcionando. Ele estava se alimentando de mais dívida externa, mais inflação, finanças públicas cada vez piores, poupança mais baixa e menor formação de capitais. O impulso do crescimento industrial passado continuava, mas com uma base financeira mais frágil. Aquele foi um momento muito vívido e crítico para o Brasil. Pode ser comparado à Coréia do Sul, outro país em desenvolvimento, aproximadamente no mesmo nível de renda nacional per capita, que também desfrutou de um crescimento vigoroso nos anos 60 e 70. O Brasil e a Coréia também chegaram ao final dos anos 70 com crescente desordem financeira, com uma dívida externa pesada e cada vez maior, e com inflação também crescente. No início de 1979, Brasil e Coréia iniciaram um programa de adaptação. A Coréia viveu uma recessão profunda durante dois anos, algo a que o país não estava acostumado. Eles perseveraram, a despeito da instabilidade política em 1980 e de uma safra muito ruim. Em 1983, eles tinham se estabilizado financeiramente e aberto a economia de modo substancial, com cada vez mais exportações. Depois de quatro anos difíceis, com o crescimento abaixo daquilo que eles consideravam como seu potencial, eles se ajustaram e então conseguiram um crescimento muito maior. O Brasil começou o mesmo ajuste em 1979. Mas depois de seis meses todo mundo já estava berrando e exigindo que a equipe econômica fosse destituída.
GALL: Isto foi durante o período ele Delfim Neto?
SACHS: Mário Henrique Simonsen era ministro do planejamento e Delfim Neto estava dizendo: “Por que estamos pisando no breque? Nós deveríamos estar pisando no acelerador”. Desafortunadamente, o Brasil mudou de rota. O resultado foi o fracasso em persistir no ajustamento. Uma nova tentativa de escapar dos problemas por meio de crescimento rápido significou uma crise fiscal mais profunda e um grande aumento na dívida externa do Brasil, entre 1979 e 1982. Desde então, infelizmente, os brasileiros vieram a acreditar que nada funciona no Brasil, nem a ortodoxia nem os choques heterodoxos de dez variedades diferentes. Portanto, o que acontece no Brasil é que uma política é experimentada por seis meses ou um ano. Então a equipe econômica é destituída e uma nova aparece. O Brasilestá sempre procurando um milagre. O sistema político não dá apoio a visões a longo prazo. Os interesses adquiridos ainda são poderosos no Brasil. É instrutivo o fato de que a Argentina, que teve muitos desses problemas durante décadas, parece ter superado essa barreira ideológica, ainda que muitos problemas persistam lá. O senso de que é hora de ir adiante com mudanças reais está presente na Argentina, mas este sentimento ainda é fraco no Brasil.
GALL: A ortodoxia nunca foi tentada de modo sério no Brasil. Nosso amigo, Javier González Fraga, ex-presidente do Banco Central da Argentina (1989-91) e membro do nosso instituto, disse que os argentinos não levaram o problema da inflação a sério até verem a face da morte. Você acha que os instintos de sobrevivência dos brasileiros estão sendo despertados neste instante ou eles ainda têm que afundar e sofrer mais ainda antes de encarar essas questões básicas?
SACHS: Os instintos de sobrevivência foram despertados. Costumava haver um certo desdém em relação à discussão do déficit público, à abertura da economia, à privatização. Agora, as políticas corretas estão na agenda, ainda que não se consiga implementá-las. Mas o Brasil ainda é uma sociedade com grupos poderosos de interesses sindicatos, empresários, governadores de estados importantes -, que ainda conseguem obter dinheiro público em vantagem própria e em detrimento da sociedade como um todo. Há mais atenção agora para políticas realistas, mas elas ainda estão bloqueadas pela paralisia social e política.
GALL: Uma pergunta final. Cada um de nós, separadamente, tem tentado lidar com problema do futuro das sociedades complexas, da administração de escala aumentada das sociedades complexas. Como você vê isto agora?
SACHS: Aquilo que mais me fascina agora, e que é de particular relevância para a Europa Oriental e Rússia, é a transformação das instituições. Nós perguntamos um ao outro: como podemos esperar pôr o capitalismo para funcionar na Rússia na próxima década, se o capitalismo levou 300 anos para emergir no Ocidente? Minha resposta é que o capitalismo possui instituições que são ‘transferíveis, através de países e sociedades. A nova tecnologia, como um aparelho defax ou um computador pessoal, pode atravessar fronteiras. Grande parte do que eu me encontro fazendo agora é esperando pensar em meios para fazer com que alguns dos avanços de 300 anos de capitalismo sejam transferidos e funcionem de modo eficiente em contextos diferentes. Dar início a um sistema bancário, baseado em princípios de mercado e funções normais de um banco central. Fazer com que as leis empresariais e a estrutura das corporações funcione. Grande parte do trabalho vai além do planejamento do orçamento ou do suprimento de dinheiro, como meios de conter a inflação alta, ou de ajudara projetar uma nova política de taxas cambiais ou uma nova moeda corrente, que são ações específicas nas quais a “expertise” técnica pode ser muito útil. O trabalho se dirige para uma questão mais ampla, de ajudar países a escolher e adaptar instituições que têm uma vida mais longa e podem ajudar na superação de disfunções profundas. Devemos lidar com o problema da sobrevivência das sociedades complexas e das adaptações que as ajudem a sobreviver.
Jeffrey Sachs no Brasil
O professor Jeffrey Sachs será um dos participantes da conferência internacional sobre Governabilidade, organizada pelo Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial e patrocinado pela ONU, que se realizará em São Paulo e outras cidades brasileiras em duas fases, durante 1993. A primeira fase será um seminário sobre A ameaça de hiperinflação no Brasil e na Rússia, que se realizará em São Paulo e Joinville, em 14, 15 e 16 de abril, com o apoio do jornal O Estado de S. Paulo e Grupo Brasmotor. A segunda fase será na semana de 13-17 de setembro, em São Paulo e outras cidades, com atenção voltada para os problemas da administração de grandes cidades e países e da sobrevivência das sociedades complexas. Além de Jeffrey Sachs, participarão, entre outros: Yagor Gaidar, exprimeiro ministro da Rússia; Rubens Ricupero, embaixador do Brasil nos Estados Unidos, presidente do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial e presidente do Conselho do GATT até 1989; Norman Gall, diretor-executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial; professor William Mc Nail, da Universidade de Chicago; Roberto Macedo, da Universidade de São Paulo e Secretário da Economia em 1991-92.
Privatização: Justa, Aberta e Transparente
GALL: O Brasil adiou seu programa de privatização, enquanto a Argentina avança nesse sentido com rapidez. O programa argentino de privatização tem sido criticado porque as principais empresas estatais está caindo nas mãos de 11 grupos privados. Nossa experiência em privatização tem demonstrado que há muitas ineficiências e injustiças no processo.
SACHS: Há muitas questões aqui, e é importante não confundi-las. Se as pessoas investirem seu dinheiro na privatização de uma empresa e ela operar num ambiente econômico competitivo, isto é ótimo. Não vejo grande problema em os compradores serem 11, 50 ou 100 grupos, se o processo de venda da empresa for justo, aberto e transparente. Algumas pessoas perguntam: qual a diferença que existe em uma empresa passar da propriedade pública para a particular ? A resposta é que, uma vez nas mãos dos particulares, a empresa vai parar de sugar o Estado. Essas empresas estatais têm sido protetoras de negócios fraudulentos. Elas ajudaram a levar o estado argentino à falência durante décadas. Tirá-las da proteção do Estado constitui grande parte da meta da privatização. Uma vez feita a privatização, a empresa deveria ser proibida de ter acesso ao tesouro público. Com isso, o povo argentino estará protegido daquilo que tem sido um sistema de abuso desavergonhado e grave injustiça, muitas vezes cometidos em nome do povo. Há outras questões. Mencionei a transparência do processo. Acho que ela é importante, obviamente, para a imparcialidade e para o estado democrático. Outra questão surge quando você privatiza indústrias que não estão num ambiente competitivo, como as empresas de serviços públicos, que devem ser reguladas de uma forma ou de outra. Uma coisa que se quer fazer tanto quanto possível é abrir a economia da Argentina à competição livre, tanto por meio do comércio internacional quanto pela facilitação de entrada no mercado para novas firmas domésticas. Acho que a direção geral das políticas está correta. O povo argentino ficará muito melhor com essas empresas fora do Estado, com proteção para o sistema fiscal, descaradamente abusado durante décadas pelos interesses disfarçados dentro dessas empresas públicas.
2. MEDINDO O RISCO
O diálogo entre Jeffrey Sachs e Norman Gall, neste segundo número do Braudel Papers, traz umamensagem derealismo e coragem, dando esperanças de que podemos acabar com o empobrecimento e a desorganização que assolam o povo brasileiro. O que emerge desse diálogo é a semelhança entre vários problemas enfrentados por Rússia e Brasil, especialmente as dificuldades institucionais e políticas que bloqueiam as medidas necessárias para terminar com a inflação e garantir as reformas estruturais que nos permitiriam novamente percorrer o caminho do desenvolvimento econômico. A semelhança é mais impressionante porque o Brasil possui uma economia de mercado dinâmica, com um sistema financeiro complexo, o que inexiste na Rússia.
Em ambos os países, a ameaça da hiperinflação surge de um impasse político. Nos dois, a estabilidade política foi sustentada por grandes e complexas transferências de recursos para indivíduos, empresas e governos locais espalhados por imensos territórios. Ambos foram influenciados durante décadas por líderes políticos que achavam que seus sistemas de produção, distribuição e crédito não precisavam ser coordenados pelas leis do mercado. Ambos sofrem com uma inflação crônica que corrói os padrões de vida, desorganiza as finanças públicas e enfraquece as instituições de proteção social. Os dois registram surtos de corrupção e violência. Tanto no Brasil como na Rússia, o poder político está agora com um Congresso que bloqueia as reformas para acabar com a falência do governo e a desorganização da economia. Regimes autoritários do passado— os comunistas, na Rússia e os militares, no Brasil — distorceram ainda mais a representação política em ambos os congressos, como parte de seus esforços para controlar a transição para sistemas mais liberais. Os líderes de ambos os congressos temem menos a hiperinflação do que a perda de seus privilégios e poder político, derivados de um sistema eleitoral distorcido, Os políticos temem mudanças no sistema que os elegeu e que transfere recursos maciços aos interesses a que eles servem.
A firmeza e coerência de Sachs na pregação de sua doutrina de política econômica, insistindo nas leis básicas da disciplina fiscal e monetária, sofrerão a oposição no Brasil, tal como aconteceu na Rússia, na Polônia e na Bolívia, daqueles que alimentam a ilusão das soluções fáceis que servem apenas para mergulhar em crises mais profundas as nações que as experimentam. Por esse motivo, diante de problemas comuns, a clareza de Sachs contrasta com a confusão que ainda prevalece no Brasil sobre como tratar da inflação.
Essa confusão atingiu tais extremos que alguns homens inteligentes acham agora que somente a cruel crise institucional da hiperinflação pode forçar o país a fazer seu sistema político obedecer a uma ordem mais viável e justa de interesses. Em outras palavras, dizem eles,é preciso mais desordem para criar uma nova ordem. Outros empresários e políticos chegam a afirmar que a inflação é uma coisa boa, que o Brasil não pode viver sem inflação. Alguns dizem que é preciso “um pouco mais” de inflação para que o país saia da estagnação, da pobreza e do impasse político que o separam cada vez mais de seu potencial econômico desde 1980.
Achamos que ambas as posições extremas colocarão nosso povo em um perigo ainda maior. Todos os episódios recentes de “um pouco mais de inflação”, ainda que tenham produzido mais atividade econômica no curto prazo, quase imediatamente ameaçaram sair do controle e pouco depois provocaram recessão mais profunda e mais desemprego do que se não fossem usados meios artificiais para “reativar” a economia. O Brasil alcançou um equilíbrio extremamente instável quando manteve o aumento mensal de preços no patamar de 20-25% durante quinze meses (outubro de 1991 a dezembro de 1992). Essa foi a primeira vez que se manteve uma taxa tão alta por tanto tempo na história da inflação mundial.
A instabilidade é tanta que qualquer estímulo não previsto à especulação ou ao pânico provocaria uma subida para um patamar mais alto, perto da taxa de 50% ao mês que muitos economistas consideram como o portal da hiperinflação, colocando uma boa parte da população em perigo. Em janeiro de 1993, a inflação mensal de Brasil e Rússia atingiu o patamar dos 30%, depois que a base monetária do Brasil expandiu em 63% até dezembro e o banco central da Rússia injetou um trilhão de rublos em empresas estatais em falência. Ambos os governos aumentaram em cerca de 140% o salário mínimo, mas essas elevações foram consumidas rapidamente pelo aumento dos preços. Para todo o ano de 1992, o déficit público de Brasil chegou a 37% do PIB (incluindo a criação de dinheiro da indexação), enquanto que o Banco Mundial estimava o déficit da Rússia em 32%. O estado da saúde e os índices de mortalidade continuam a se deteriorar na Rússia, como costuma acontecer sob a maioria das inflações altas.
Até hoje, a experiência humana registrou apenas 19 hiperinflações, todas elas no século XX. Até a metade da década de 1980, todas as hiperinflações foram crises institucionais geradas pela guerra. Na Áustria, Hungria, Polônia, Rússia e Alemanha, foram conseqüências da Primeira Guerra Mundial; na China, Grécia e Hungria (novamente) foram frutos da Segunda Guerra. Depois veio a Bolívia (1984-85), seguida de Argentina, Peru, Nicarágua, Brasil, Polônia, Iugoslávia, Rússia, Sérvia, Zaire e Ucrânia. As onze hiperinflações que ocorreram desde 1985, principalmente na América Latina e na Europa Oriental, estão menos relacionadas com guerras do que com décadas de administração fracassada de problemas de escala surgidos do processo de modernização. Sete dessas hiperinflações aconteceram em nações-estados, como o Brasil, com baixa densidade populacional e extensos compromissos territoriais. Todas as 19 hiperinflações registradas pela história ocorreram em países que passavam por mudanças não somente de governo, mas de regime. Na última década, o Brasil teve suas próprias mudanças de “regime”, passando do governo militar para o civil, para uma nova Constituição em 1988, um presidente popularmente eleito em 1989 e agora, para um plebiscito mal definido para escolher entre os regimes parlamentarista ou presidencialista. No entanto, quanto mais o regime muda de nome, mais os problemas e os procedimentos continuam os mesmos.
Oque mais impressiona na confusão contínua do Brasil sobre a questão da inflação é o contraste com a mudança de atitude de seus vizinhos. Em nosso seminário sobre a reforma econômica argentina, Javier González Fraga, presidente do Banco Central da Argentina (1989-91) e membro do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, disse que “nós argentinos não levamos a sério a questão da inflação até que vimos a face da morte”. Até recentemente, a Argentina detinha o recorde mundial da inflação. De 1960 até 1990, o nível mundial de preços multiplicou-se 14 vezes, a pior inflação global jamais registrada para um período semelhante. Mas na América latina a inflação se tornou uma tal doença crônica que os preços em 1990 tinham se multiplicado não 14 vezes, mas 1,7 milhões de vezes em relação a 1960, produto de um sistema de comportamento radicalmente diferente do vigente no resto do mundo. A inflação brasileira foi muito pior ainda do que essa horrível média latino-americana, com os preços multiplicando-se 1,9 bilhões de vezes desde 1960, enquanto que na Argentina eles subiram 359 bilhões de vezes. Contudo, a Argentina conseguiu deter a inflação, baixando a taxa mensal para perto de zero no final de 1992, enquanto que no Brasil permanece a ameaça de hiperinflação. As populações da Argentina, do Peru e da Bolívia aceitaram sacrifícios de curto prazo para reorganizar suas economias, pois aprenderam, com a agonia e o caos da hiperinflação, que nenhum povo pode sobreviver por muito tempo transferindo recursos para si mesmo que não existem.
Não existem soluções fáceis. As leis da economia são simples. O poder da mensagem de Sachs está na essencial e inevitável natureza da estabilização. A política pode ajudar ou bloquear uma solução, dependendo das percepções de perigos futuros e da motivação dos povos e líderes para evitar riscos futuros.
Publicado: 1993
Diretor: Norman Gall
Editor: Pedro Maia Soares
Jornalista Responsável: Pedro Maia Soares - MT8960-26-41