* Por Norman Gall
1 - Muitas chances
Já sabemos que 2014 deve ser um ano emblemático para o Brasil. Sediará a opa do Mundo em junho e em outubro acontecerão as eleições que devem celebrar a consolidação da democracia e os grandes avanços na justiça social. Enquanto isso, o Brasil está caindo em um atoleiro institucional. Os aspectos mais visíveis desse atoleiro são a decadência da infraestrutura, a corrupção endêmica; o parasitismo fiscal, a escalada para a inflação crônica, epidemias de violência, altos custos e a rigidez institucional no mercado de trabalho, e a produtividade estagnada. Esses problemas institucionais enfraquecem as vantagens estratégicas que o Brasil desfruta em recursos naturais, uma população ambiciosa e um grande mercado interno. O Brasil precisa de uma nova estratégia para superar essas dificuldades, o que levará tempo e exigirá paciência e uma liderança política capaz de construir um consenso estratégico.
Onde estão as novas lideranças? Por que não aparecem?
Há muita gente talentosa e empreendedora no Brasil. Vemos altos níveis de capacidade na gestão de empresas, publicidade, marketing, finanças, agricultura, jornalismo. No que diz respeito a exploração e produção de petróleo, por exemplo, a Petrobras vinha fazendo grandes descobertas de petróleo em águas profundas do Atlântico Sul, antes de ser incumbida de realizar missões impossíveis de acordo com “conveniências políticas”. Quem assistir ao programa “Globo Rural”, da TV Globo, não deixará de se impressionar pela qualidade das inovações dos pequenos produtores em remotos rincões do Brasil. Recentemente publicamos em Braudel Papers, nosso jornal de pesquisa e opinião, o ensaio “A Internet no Brasil”, de Peter Knight, membro fundador de nosso Instituto e ex-economista-chefe para o Brasil do Banco Mundial. Ele mostrou como jovens empreendedores em áreas da Amazônia permitem o amplo acesso à rede de comunidades rurais. Esses empreendedores da Internet estão entre milhões de jovens brasileiros, muitos dos quais trabalham de dia e estudam à noite, em cursos do ensino médio e nas universidades, procurando aproveitar oportunidades que seus pais e avós nunca tiveram. Enquanto ouvimos muitas histórias de sucesso individual, há poucos sinais de esforço entre os brasileiros para organizar uma ação coletiva com o objetivo de fortalecer as instituições e levantar a qualidade da vida pública.
O pessimismo sobre o Brasil convive com a ideia do Brasil como terra feliz, o país do futuro, uma cornucópia de riquezas naturais e muitos talentos individuais, marcado pelo ritmo pulsante de sua música popular que encanta muitos outros países, com sonhos de uma potência mundial do século XXI, o único país cinco vezes campeão da Copa do Mundo, um arquipélago continental de comunidades que falam a mesma língua e levantam a mesma bandeira, país intocado pelas grandes guerras, misturando 200 milhões de pessoas de origem africana, europeia, asiática e ameríndia, sem conflitos religiosos e étnicos.
Muitas pessoas têm poucas chances na vida; algumas têm muitas. O Brasil é uma terra feliz porque já teve muitas chances. Porém essas muitas chances do Brasil, criaram uma cegueira entre os brasileiros aos limites do tempo e dos recursos. A crença na elasticidade do tempo e dos recursos, traduz uma tolerância de fracassos repetidos que já produziu um impasse institucional, com consequências que poderiam ter impacto muito além do ano emblemático de 2014. Se esse impasse não for abordado com firmeza e criatividade, a qualidade de nossa vida cotidiana vai se degradar enquanto a violência se espalha e a infraestrutura se deteriora, junto com as habilidades necessárias para gerir uma sociedade complexa numa escala continental. Enquanto reclamam um papel grandioso para o Brasil no mundo, nossas lideranças políticas personificam o triunfo do localismo, investidas em redes densas de patrocínios enquanto as transferências maciças de recursos viram uma finalidade em si mesmo.
O Brasil se beneficiou com a expansão mundial do comércio e das finanças nas últimas décadas, atingindo o ápice do que tem sido chamado de a melhor fase da sua história. As décadas após o fim do regime militar, em 1985, testemunharam a consolidação da democracia, o fim de décadas de inflação crônica e avanços importantes na justiça social. Democracia, estabilidade e expansão do consumo deram aos brasileiros uma visão favorável de suas perspectivas. Em uma pesquisa, a Global Attitudes Survey, do Pew Research Center, de Washington, mostrou que os brasileiros estão mais satisfeitos com as condições econômicas do que cidadãos de qualquer um dos 22 países pesquisados, com exceção dos chineses. Mais de três quartos dos brasileiros (77%) acreditaram que o país se tornará, ou já é, uma potência mundial, embora tal conceito continue vago. No entanto, os protestos espontâneos que surgiram em 352 cidades em junho de 2013 sobre a qualidade da vida pública – corrupção, transporte urbano, escolas e hospitais – apresentaram uma visão mais duvidosa do futuro do Brasil. Alguns anos de virada podemos não acreditar em números mágicos, mas a história nos mostra alguns anos de virada. No ano de 1814 aconteceram a derrota e abdicação de Napoleão como Imperador dos franceses e as negociações entre as potências europeias no Congresso de Viena que criou as condições para um século de paz. Em 1914 viu-se, de repente, o fim daquela paz com o assassinato em Sarajevo do herdeiro ao trono do Império Austro-húngaro, provocando a mobilização das alianças militares que conduziu às duas décadas das guerras mundiais, às revoluções, hiperinflações, e à Grande Depressão. Não sabemos o que 2014 nos pode dar, mas está cheio de datas históricas para o Brasil e de necessidades para tomada de decisões importantes. 2014 vai marcar 60 anos desde o suicídio de Getúlio Vargas; 50 anos desde o golpe militar que deu início a duas décadas de ditadura; 30 anos desde a campanha de massas para eleições diretas para voltar à democracia e 20 anos desde que o Plano Real foi lançado para deter a inflação crônica e estabilizar nossa economia. 2014 também poderia tornar-se o ano das decisões.
Um século atrás
O caminho foi longo. Há um século, em 8 de março de 1912, uma pequena embarcação zarpou do Rio de Janeiro levando a bordo uma equipe de especialistas em saúde pública que faria uma viagem de exploração no Nordeste brasileiro, impactado pela seca. Depois de 18 dias cavalgando na caatinga, os viajantes chegaram ao povoado de São Raimundo Nonato, no Piauí, onde dois pesquisadores, Arthur Neiva e Belisário Pena, avaliaram a condição humana:
Raro o indivíduo que sabe o que é o Brasil. Piauí é uma terra, Ceará outra terra, Pernambuco outra e assim os demais Estados. O governo é, para esses párias, um homem que manda na gente, e a existência desse governo conhecem-na porque esse homem manda todos os anos cobrar-lhes os dízimos (impostos). Perguntados se essas terras (Piauí, Ceará, Pernambuco etc) não estão ligadas entre si, constituindo uma nação, um país, dizem que não entendem disso. Nós éramos, para eles, gringos, lordaços [...] O analfabetismo é geral e abrange mais de 80% da população. A vida se reduz ao que concerne à criação miúda, e ao gado, às vicissitudes da seca, à previsão do inverno e nada mais. [...] Depois das chuvas de inverno vem a malária. Entre a antiga e a nova cidade de São Raimundo, há uma bacia natural que enche durante o período de chuvas, deixando poças durante dois ou três meses de seca, enquanto uma epidemia de malária se dissemina. [...] A água é detestável, salobra, extraída de poços do riacho cortado depois do inverno, e de cacimbas nas secas. [...] Por que não se faz um poço, revestido de pedra, e coberto, colhendo-se a água por meio uma bomba? Não vale a pena, é a resposta. O povo já está acostumado com isso, que não faz mal algum.
Visitei São Raimundo para entender melhor o progresso do Brasil no último século. Naquela época, a expectativa de vida estava em torno de 30 anos, similar à da Índia, e hoje chega aos 74 anos. Em 1900, a população era de só 17 milhões, contra 200 milhões hoje. Os tempos modernos, portanto, chegaram ao Brasil. Aparentemente, a modernização alcançou até o sertão, palavra cunhada pelos portugueses nos séculos XVI e XVII a partir de uma corruptela de “desertão”. Os habitantes do sertão, não mais esquecidos pelo governo, hoje são banhados em pagamentos e subsídios do governo. Chega a São Raimundo a eletricidade gerada no complexo hidrelétrico de Paulo Afonso, construído nos anos 50 no rio São Francisco. Há hotéis modernos, ruas pavimentadas, ar-condicionado, água mineral engarrafada, internet wi-fi e muitas clínicas e empresas comerciais. São Raimundo ainda é pobre e geograficamente isolada, mas lá quase todos têm telefone celular e o número de motocicletas é três vezes maior que o número de carros, depois que as vendas de motos triplicaram nos últimos três anos. O então prefeito da cidade, padre José Herculano Negreiro, me disse que as pessoas estão atentas às oportunidades e migram para cortar cana de açúcar em São Paulo, fazer trabalhos domésticos ou em construções em Brasília ou Vitória, e enviam o dinheiro economizado para suas famílias, que assim fazem compras e reformas nas casas. Em São Raimundo, porém, há muito subemprego. Jovens com suas camisetas amarelas trabalham em mototáxis, concentrados na raça principal à espera de clientes. Há muitos barbeiros e salões de beleza vazios. As áreas mais atrasadas do Brasil ainda dependem de empregos públicos, como é o caso de São Raimundo, um dos milhares de municípios em que quase toda a renda é proveniente de transferências do governo federal, dando pouca importância ao recolhimento dos impostos locais.
É difícil superestimar tais mudanças. Numa manhã de inverno, caminhando em meu bairro no centro de São Paulo, cruzei com uma gari vestida num macacão verde com listas brilhantes, ligando ansiosamente de seu celular para sua casa numa distante favela para checar se os filhos tinham acordado em tempo de ir à escola. No prédio em que moro, um jovem faxineiro acabou de voltar de uma viagem de duas semanas à sua cidade natal no sertão da Paraíba, para onde foi de avião. Ele pagou as passagens em cinco prestações mensais. Poucos anos atrás, a viagem de 2000 quilômetros, se ocorresse, teria sido feita de ônibus, três dias e noites na ida e na volta. Nos bairros da periferia de São Paulo, novas amenidades como salas de ginástica, pet shops, LAN houses e escolas de inglês aparecem nas ruas, enquanto prédios de apartamentos mudam o perfil das ex-favelas.
Quando Arthur Neiva e Belisário Pena estiveram em Raimundo Nonato, em 1912, não fazia muito tempo que o Brasil tinha passado pela convulsão provocada pela crise financeira do Encilhamento (palavra emprestada do turfe, que se refere ao momento em que se coloca a cilha no cavalo, pouco antes do início da corrida, justamente quando as apostas se intensificam).
Essas convulsões surgiram dos conflitos entre cafeicultores e uma ascendente classe média urbana após a abolição da escravatura, em 1888, e o golpe militar que instituiu a República, em 1889, pondo fim ao reinado de 49 anos do imperador D. Pedro II. Machado de Assis, com ironia, chamou de “o primeiro dia da criação” o 17 de janeiro de 1890, quando o ministro da Fazenda, Ruy Barbosa, baixou o primeiro decreto econômico da Primeira República (1899-1930), criando bancos com licença para imprimir dinheiro e eliminando obstáculos para a criação de novas empresas, um dos muitos “pacotes” que no século seguinte foram baixados na escalada da inflação crônica. Machado escreveu que o Encilhamento produziu “a grande quadra das empresas e companhias de toda espécie. Cascatas de ideias, de invenções, de concessões rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de réis. Todos os papéis, aliás ações, saíam frescos e eternos dos prelos. Eram estradas de ferro, bancos, fábricas, minas, estaleiros, navegação, edificação, exportação, importação, ensaques, empréstimos, todas as uniões, todas as regiões, tudo o que esses nomes comportam e mais o que esqueceram”. Os novos bancos, para poder imprimir dinheiro e financiar novas empresas, foram capitalizados com títulos da dívida pública. Entre negócios fraudulentos com terras e com especulações na Bolsa de Valores, o número de empresas listadas subiu de 90 em 1888 para 450 em meados de 1891, até o crash que provocou a queda de 22% da renda per capita, do qual o país precisou de vinte e um anos para se recuperar.
O Encilhamento também produziu a primeira grande inflação no país, e gerou protestos de rua contra o aumento de preços e a desvalorização da moeda, que perdeu mais da metade de seu valor. As ideias, invenções e belas visões evocadas por Machado foram estimuladas pela expansão sem precedentes da economia mundial entre 1870 e 1914. A qualidade da vida cotidiana em muitos países decolou com as revoluções no transporte e na produção e canalização da energia elétrica e do petróleo, gerando grandes aumentos no comércio mundial, com os brasileiros incorporando com entusiasmo as invenções estrangeiras. Só um ano após a instalação em 1882 da primeira central elétrica comercial por Thomas Edison em Nova York, o Imperador Pedro II inaugurou o primeiro sistema de iluminação elétrica na América do Sul em Campos (RJ), seguido por dezenas de iniciativas locais de fazendeiros e comerciantes, enquanto a energia elétrica substituiu os cavalos que puxavam os bondes no Rio de Janeiro e outras cidades. No mesmo sentido, o Brasil está surfando numa outra onda global de melhorias nos padrões de vida, enquanto os protestos se multiplicam contra a qualidade e prioridades da vida pública definidas pela classe política. Hoje, apesar das proteções institucionais e com uma economia maior e mais complexa, o Brasil enfrenta a ameaça de uma nova onda inflacionária à medida que o governo recorre a práticas fiscais exóticas para garantir a estabilidade em 2014. O Brasil já entrou na fase final do boom clássico do crédito, marcada por:
1) valorização cambial nos últimos anos provocada por forte influxo de capital;
2) aumento dos empréstimos por bancos públicos a taxas subsidiadas;
3) política fiscal frouxa;
4) baixo nível de poupança interna;
5) indução de um boom do consumo financiado com linhas de crédito do Tesouro aos bancos oficiais.
6) disparada dos preços dos imóveis.
O último quarto de século no Brasil coincide com o que pode ser o ápice do desenvolvimento humano que se acelerou durante as seis décadas depois da Segunda Guerra Mundial. Avanços prodigiosos ocorreram em escala planetária em longevidade, nutrição, produtividade, comunicações, logística, saúde pública, ensino e em muitos outros campos. Os padrões de consumo da classe média estão proliferando em todo o mundo. O desafio hoje é manter esses avanços. O Brasil tem muito a ganhar ou a perder com essas contingências. Estamos entrando numa nova era. Sombras do futuro pintam nosso cotidiano. Instituições estão sendo reestruturadas no mundo todo enquanto lidamos com o recuo da maior e mais rápida expansão da atividade econômica na experiência humana. O momento das crises no Brasil pode surpreender, mas em geral sua dinâmica é previsível.
2. O Brasil e o mundo
Foi a presidente Dilma Rousseff quem pela primeira vez falou em “tsunami monetário” quando os bancos centrais das nações ricas inundaram o mundo com dinheiro barato em resposta à crise financeira global, perturbando as economias de países em desenvolvimento como o Brasil. “Os bancos centrais dos países desenvolvidos insistem em uma política expansionista que distorce as taxas de câmbio”, disse a presidente na assembleia geral das ações Unidas em setembro de 2012. “Dessa maneira, países emergentes perdem mercados devido à valorização artificial de suas moedas, o que agrava a recessão mundial”. O Brasil pode ser visto como um caso especial. Na média, os países em desenvolvimento cresceram 4,9% em 2012, um ritmo mais acelerado do que o registrado nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial, enquanto a expansão brasileira foi de apenas 0,9% em meio da desorganização econômica, apesar do boom do consumo estimulado pelo aumento do crédito bancário. Agora as autoridades brasileiras estão preocupadas com a redução do fluxo financeiro do exterior para cobrir o déficit em conta corrente, que cresce à medida que a bagunça fiscal provoca pessimismo com as perspectivas de curto prazo do Brasil. Uma advertência veio de Antônio Delfim Netto, com seus 85 anos, ex-ministro da Fazenda no regime militar (1964-85), badalado na época do “milagre” brasileiro quando a economia cresceu a 10% ao ano em 1968-74. Delfim depois assumiu o Ministério de Planejamento durante a crise latino-americana das dívidas e na escalada do Brasil para a hiperinflação na década de 80. Homem de corpo grosso com olhar de coruja e jeito irônico de falar, em discurso salpicado com erudição econômica, Delfim há uma década atua como assessor informal aos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Delfim advertiu que no início de 2014 o Brasil poderá ser punido “com uma ‘tempestade perfeita’, gerada por uma conspiração de eventos simultâneos: 1) a redução de nosso rating e 2) o início do fim dos estímulos monetários nos EUA. Se isso ocorrer, teremos uma rápida elevação da taxa de juros no mundo, uma mudança dos fluxos de capitais, um ajuste instantâneo e profundo da nossa taxa de câmbio, uma redução do crédito bancário, uma queda dramática da renda real dos trabalhadores e a volta – em legítima defesa – de taxas de juros reais aos absurdos níveis com que vivemos durante tantos anos, acompanhadas por um aumento do desemprego. Isso sim – e não uma fantasia política – poderá comprometer a confortável posição atual da presidente Dilma Rousseff no processo eleitoral”. Líderes da comunidade empresarial e do PT têm pressionado o ex-presidente Lula a substituir Dilma como candidato em 2014.
A advertência de Delfim veio de uma experiência amarga. No fim de semana de 19 de fevereiro de 1983, logo após o Carnaval, ele chocou o país com uma maxidesvalorização do cruzeiro, em 30%, numa manobra desesperada para segurar a solvência do Brasil, apenas seis meses após o calote mexicano em agosto de 1982, que disparou a crise financeira latino-americana. A maxi foi um golpe que aumentou as dívidas externas das empresas brasileiras em 30% após os empresários serem estimulados pelo governo a tomar empréstimos em moeda forte, incorporando divisas escassas à economia. A maxi também provocou uma escalada de inflação em 1982 de 100% para 142% em 1983 e para 200% em 1984, encaminhando o Brasil às hiperinflações de 1990 (6.390%) e 1994 (4.922%). Enquanto a inflação hoje é uma pequena parcela do que era nas décadas de 80 e 90, as pressões estão crescendo. Hoje Delfim aconselha prudência e adverte contra uma perda de controle. Naquela época o Brasil experimentou estratégias heterodoxas. Atualmente, com a inflação quase nula nos países ricos, as heterodoxias estão sendo testadas numa escala global. No entanto, as pessoas esquecem. O padrão de vida subiu e a estabilidade deixa de ser questionada. Jovens brasileiros, na melhor das hipóteses, têm apenas uma vaga consciência das dificuldades superadas em décadas recentes. Alguns pais ainda contam aos filhos que naqueles anos o valor do salário se pulverizava tão rapidamente que não dava para comprar comida ao final do mês. Ainda assim, na história da inflação no mundo, não há registro de uma nação que tenha tido mais êxito do que o Brasil no início dos anos 1990 em evitar o colapso econômico enquanto enfrentava aumentos mensais de 20% nos preços, durante meses seguidos. Naquela altura, líderes civis diziam que a hiperinflação ainda estava longe, mas ela chegou, com altas nos preços ao consumidor atingindo 6.390% em 1990 e 4.922% em 1994. A loucura finalmente chegou ao fim em 1994 com o Plano Real, a sexta vez em oito anos que três zeros foram cortados da moeda nacional, que mudava de denominação a cada plano. “É como trocar fralda de bebê”, disse Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, acrescentando mais tarde: “O custo de vida se elevava 1% ou 2% ao dia, era preciso passar adiante os aumentos, pois era um Tsunami, uma reação em cadeia, um conflito distributivo que nos impunha um comportamento nefasto, pois se buscava ‘correr à frente’ do processo, e assim nos tornávamos cúmplices do vício, ainda que em legítima defesa”. Entre 1980 e 1995, quando a inflação anual média foi de 728%, o Brasil teve 15 ministros da Fazenda e 14 presidentes do Banco Central. Estratégias heterodoxas Enquanto isso, os bancos centrais do mundo persistiram nas estratégias heterodoxas para enfrentar a crise financeira que eclodiu em 2007-2008. Além de manter os juros praticamente zerados, o Federal Reserve dos Estados Unidos, o Banco Central Europeu, o Banco da Inglaterra e mais recentemente o Banco do Japão promoveram uma nova política de afrouxamento quantitativo (conhecido como quantitativo easing ou QE, na sigla em inglês), comprando grandes volumes de títulos públicos e privados da dívida, a fim de estimular maior liquidez para investimento e consumo. Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu, disse: “Farei o que for preciso” para preservar o euro como um sistema monetário. Juros mais baixos pagos por títulos de dívida pública e fluxos de capital oriundos da compra de bônus por bancos centrais entre 2007 e 2012 geraram economias de US$ 1,6 trilhão, dois terços das quais nos Estados Unidos. O governo norte-americano economizou US$ 900 bilhões com a queda pela metade dos juros incidentes sobre sua crescente dívida, às custas da rentabilidade das famílias (US$ 360 bilhões) e credores estrangeiros (US$ 480 bilhões). Os juros mais baixos também aliviaram o fardo das dívidas corporativas e estimularam as empresas a contratar novos empréstimos, além e responderem por 20% de seus lucros desde 2007, de acordo com o McKinsey Global Institute (MGI ). No Brasil, o governo achou outro caminho para o afrouxamento quantitativo. Em vez de usar o Banco Central para bombear dinheiro na economia comprando títulos no mercado de dívida, o ministro da Fazenda aumentou a liquidez do sistema tomando empréstimos para capacitar os bancos oficiais – sobretudo o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil – a expandir o crédito, o que elevou sua fatia no mercado nos últimos anos. A diferença é importante. Enquanto os bancos centrais podem criar ou reduzir a liquidez através dos mecanismos tradicionais do mercado aberto, comprando ou vendendo títulos da dívida, os empréstimos dos bancos públicos não podem ser comercializados a qualquer momento e, quando subsidiados por empréstimos do Tesouro a taxas negativas, exigem mais financiamento oficial e aumento da dívida pública. “A Segunda Grande Contração” A crise financeira global gerou uma onda de pesquisa e reflexão por parte dos economistas, parecendo a angustiada busca pelas causas e soluções da Grande Depressão dos anos 1930, época em que faltavam as sofisticadas ferramentas técnicas e analíticas hoje disponíveis. No clássico História Monetária dos Estados Unidos, 1867-1960, Milton Friedman e Anna J. Schwartz chamaram a Depressão de “A Grande Contração”. Alguns economistas chamam a crise global atual como “A Segunda Grande Contração”. Hoje é amplamente entendido que autoridades monetárias e políticas salvaram o mundo de um colapso econômico em 2008-2009, o que teria sido uma calamidade tão grande quanto a Depressão dos anos 1930. Apesar de receios pessoais em ferir princípios básicos, elas proporcionaram transferências financeiras maciças para bancos, empresas e governos em crise, deixando os bancos centrais com balanços inflados e os governos com enormes dívidas. Esse salvamento estreito e caro deveria inspirar cautela. Em This Time Is Different: Eight Centuries of Financial Folly, Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff advertiram em 2009 que severas crises financeiras tendem a ser longas: “À medida que diminuírem as reservas internacionais (acumuladas nos anos de bonança antes de 2007) e aumentar a deterioração fiscal, as pressões financeiras sobre o serviço da dívida (pública e privada) devem crescer. Dada a tendência de aumento de calotes em dívidas soberanas na esteira de uma crise financeira global e do declínio dos preços globais das commodities, a Segunda Grande Contração pode provocar um elevado número de calotes, reescalonamentos e/ou resgates por parte do Fundo Monetário Internacional (FMI)”. Mais tarde, Rogoff argumentaria que a redução ou o perdão das dívidas seria preferível a mais contração econômica. Dentre os 12 países que sofreram severas crises sistêmicas em 2007-08, apenas dois (Estados Unidos e Alemanha) haviam recuperado os níveis anteriores de renda per capita seis anos mais tarde. Na edição de abril de 2013 do Perspectivas Econômicas Mundiais, o FMI advertiu que “crises financeiras do tipo que afetou muitas economias deficitárias tendem a significar perdas permanentes no nível da produção relativo às tendências antes da crise”. O mundo mudou. A crise de 2008-09 acordou os fantasmas e mitos dos anos 30 com o medo de outra Grande Depressão. No entanto, mudaram tanto as estruturas econômicas e demográficas que as contingências hoje são diferentes e mais complexas. Em 1930 só 22% da população mundial morava em cidades, contra 52% atualmente, ou seja, um aumento da população urbana de 450 milhões para 3,7 bilhões em apenas oito décadas. Desde 1930 a taxa da urbanização elevou-se de 20% para 85% no Brasil e 91% no Japão, duas das economias mais dinâmicas do século 20, superando os padrões estabelecidos (80%) na Europa e nos Estados Unidos e também nos países maiores da América Latina. Ondas de jovens migrando para as cidades aceleraram o crescimento econômico, aumentando tanto a produtividade quanto a demanda, crescimento este reforçado pelas necessidades da vida urbana e a prolongação da expectativa de vida enquanto a economia mundial expandiu. Os governos assumiram responsabilidades maiores em sustentar e administrar a maior complexidade das economias e sociedades. Esses avanços históricos não devem ser repetidos. As economias amadureceram e as populações estão envelhecendo. Os governos agora encontram dificuldades em sustentar seus compromissos custosos. A produtividade fica estagnada no mundo, notavelmente no Brasil. O que temos aprendido? Claudio Borio, do Bank for International Settlements (BIS), no ensaio intitulado The financial cycle and macroeconomics: What have we learnt?, achou que os ciclos financeiros duram mais (16 anos na média, desde 1960) e têm maior impacto do que os ciclos econômicos, que duram de um ano a oito anos, segundo cálculos tradicionais. Borio argumentou que “a duração e amplitude do ciclo financeiro aumentou principalmente desde meados dos anos 1980, uma boa aproximação para o início da liberalização financeira nas economias maduras”. No que pode ter sido uma referência aos Estados Unidos e ao Brasil, bem como a outros países atualmente em crise, Borio observou que quebras bancárias tendem a ocorrer no pico do ciclo financeiro, quando “a ligação entre poupança e crédito é muito frouxa”, uma vez que “o estoque de crédito excede a renda por uma margem considerável”. Ele acrescentou: “O ciclo financeiro é mais bem apreendido pelo comportamento conjunto do crédito e dos preços imobiliários”. O problema hoje é o enorme estoque de ativos financeiros que proliferaram nas últimas décadas, em grande parte com garantias governamentais, explícitas ou implícitas. Foi de longe a maior expansão da atividade financeira na experiência humana. Entre 1980 e o início da crise em 2007, segundo o MGI, o volume dos ativos financeiros no mundo multiplicou por quase 20 vezes em termos nominais, para US$ 198 trilhões, uma estimativa que inclui a capitalização do mercado global de ações, bônus e outros títulos de dívidas, empréstimos e ativos securitizados, excluindo derivativos, ouro, imóveis, depósitos bancários e dinheiro vivo. As reservas internacionais dos bancos centrais foram multiplicadas por 60 desde 1990, de US$ 200 bilhões para US$ 12 trilhões. Nesses 27 anos, o estoque global de ativos financeiros aumentou em um nível equivalente a um Produto Mundial Bruto (PMB) para mais de 3,5 PMBs. Esses recursos estão altamente concentrados. Apenas nos Estados Unidos, bancos, companhias de seguro e empresas administradoras de bens – como a BlackRock, a Fidelity e a Pimco – controlam juntas cerca de US$ 53 trilhões em ativos financeiros investidos no mundo todo, o equivalente a quase três quartos do PMB. Numa análise separada, o FMI calculou que em 2011 o estoque global de ativos financeiros era de US$ 259 trilhões, ou 3,69 vezes maior do que o Produto Mundial Bruto, após ter quase triplicado desde 2002. No Brasil, os ativos financeiros também cresceram de forma espetacular, embora a partir de uma base muito menor. O crédito total passou de apenas 25% do PIB em 2003 para 55% em 2013. O estoque de crédito, ainda bem mais baixo do que o registrado em economias desenvolvidas, cresceu com extrema rapidez, mas os lucros dos bancos estagnaram e as provisões para cobrir prejuízos aumentaram. Atraídos pelas baixas taxas de juros internacionais, tomadores de empréstimos brasileiros, dos setores público e privado, levantaram em 2012 US$ 51 bilhões em bônus estrangeiros, um terço a mais do que no ano anterior, a exemplo do que fizeram outros países em desenvolvimento, como Turquia, México, Líbano, República Dominicana, Mongólia, Ruanda e Ucrânia. A república centro-americana de Honduras, com finanças frágeis e uma das taxas de homicídios mais elevadas do mundo, podia levantar um empréstimo de US$ 500 milhões por dez anos no mercado internacional de bônus em 2013, graças ao afrouxamento quantitativo do Fed. As economias em desenvolvimento, menos endividadas do que as ricas, devem rolar US$ 1,5 trilhão em dívidas a cada 12 meses. Crédito, sobretudo o crédito improdutivo, se tornou um vício global. Buscando ganhos maiores do que as taxas de juros perto de zero por cento praticadas nas economias desenvolvidas, investidores estrangeiros canalizaram US$ 394 bilhões ao Brasil nos quatro anos que se seguiram ao anúncio da quebra do banco de investimentos Lehman Brothers em outubro de 2008, uma soma equivalente às reservas internacionais do Brasil, da qual cerca de três quartos corresponde a dívidas. Esses fluxos recentes foram mais de quatro vezes superiores aos investimentos financeiros nos quatro anos (2003-2006) que precederam a crise atual. Para os mercados emergentes em geral, a emissão de bônus por corporações não financeiras aumentou de cerca de US$ 100 bilhões em 2008 para US$ 600 bilhões em 2012, enquanto houve estagnação no lançamento de ações. Em abril de 2013, o relatório Global Financial Stability Report, do FMI, discutiu “a possibilidade de dinheiro demais estar atrás de poucos ativos no mercado emergente”, notando que “a elevação do coeficiente dívida-patrimônio das empresas no Brasil parece estar muito relacionada à maior emissão de bônus denominados em moeda estrangeira”. Isso provocou “preocupação de que a flutuação da taxa cambial ou o vencimento de empréstimos de curto prazo poderiam representar uma vulnerabilidade quando as taxas começassem a subir”. Enquanto os juros nos Estados Unidos e na Europa ainda não subiram, os fluxos de capital para o Brasil reverteram e viraram fugas de capital. O encolhimento das exportações brasileiras, junto com aumentos de importações e gastos de consumo no exterior, geraram déficits maiores em conta corrente no meio de desordem fiscal. Perdas no valor externo do real aceleraram a fuga de capitais enquanto cresceu, de novo, a carga das dívidas externas das empresas brasileiras. Bancos estatais gigantes A área mais dinâmica da atividade bancária no Brasil, e sistematicamente a mais perigosa, é a rápida expansão dos empréstimos por bancos estatais, que elevaram sua participação no mercado de 35% em 2008 para 50% em 2013. O total dos ativos dos três gigantes bancos estatais cresceu rapidamente e já atinge US$ 1,25 trilhão, o equivalente à metade do PIB, com uma taxa média anual de crescimento de 28% desde 2008. Essa expansão decorreu das transferências cumulativas entre 2008 e 2012 do Tesouro nacional para os bancos estatais, que totalizaram 9% do PIB. A escala e a velocidade da expansão dos empréstimos dos bancos estatais brasileiros, que elevaram os ativos em US$ 785 bilhões nos últimos cinco anos, são extremamente raras na história financeira global. É 57% maior do que os US$ 500 bilhões emprestados pelos bancos estatais chineses como estímulo para amortecer o impacto da crise global de 2008-2009, enquanto o estoque de crédito dos setores não financeiros da China cresceu de 130% para quase 200% do PIB e aumentou 52% nos primeiros cinco meses de 2013. “Desde 2009, o estoque de dívida interna chinesa tem crescido tão rapidamente que se aproximou da bolha de crédito nos Estados Unidos, Europa, Japão e Coreia, que precipitou a recessão”, segundo o The Wall Street Journal. A vigorosa resposta chinesa à crise pode ter inspirado os governantes brasileiros. No entanto, a economia chinesa, movida pelos investimentos, é três vezes maior que a brasileira e mais competitiva, com US$ 3,5 trilhões de reservas em moeda estrangeira obtidas com enormes superávits comerciais. Já no Brasil o desempenho dos investimentos tem sido fraco e a balança comercial e a conta corrente passaram a ser deficitária devido ao boom do consumo nos últimos anos. Enquanto o investimento na China alcançou 48% do PIB, no Brasil o investimento ficou estagnado em 18%.
O MGI observa que “boa parte da aparente intensificação financeira [global] nas décadas anteriores à crise [2007-08] nas economias desenvolvidas deveu-se na realidade à alavancagem no próprio setor financeiro. Menos de 30% da expansão no volume de ativos financeiros em relação ao PIB teve origem no financiamento ao setor privado”. Nos Estados Unidos, o setor financeiro dobrou de tamanho, de 4% do PIB em meados dos anos 1970 para quase 8% em 2007, e absorveu dois terços da poupança líquida dos países superavitários (China, Japão, Arábia Saudita, Alemanha e Rússia). Enquanto isso, o estoque de crédito cresceu de US$ 3 trilhões, quatro décadas atrás, para US$ 53 trilhões no início de 2013, o que levou Bill Gross, da Pimco, a descrever um cometa, uma “Supernova do Crédito” como “um monstro que exige constantemente volume crescente de combustível, uma supernova que se expande e se expande, mas começa a se consumir nesse processo. Cada dólar a mais parece gerar cada vez menos calor. Nos anos 1980, precisava-se de US$ 4 de crédito novo para gerar US$ 1 de PIB real. Na década passada, eram necessários US$ 10, e desde 2006 a cifra subiu para US$ 20, para se obter o mesmo resultado”. No Brasil, novos créditos equivaleram a 16,7% do PIB em 2012, mas produziram um crescimento econômico de apenas 0,9%. Em 2012, a dívida pública bruta brasileira chegou a 68,5% do PIB, quase o dobro do patamar de todas as economias emergentes (35,2%), de acordo com o FMI. Mais recentemente, quatro estados (Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais e Santa Catarina) tomaram empréstimos totalizando US$ 3,7 bilhões de bancos estrangeiros, com a garantia do governo federal, para pagar dívidas ao Tesouro e a outras agências do governo.
3. Instituições e inflação crônica
O governo do Brasil nos últimos anos prosseguiu com uma estratégia velha ao “reativar” a economia na tentativa de ganhar impacto eleitoral e sair da ameaça de inflação por via do crescimento. Nas décadas passadas, os governos populistas no Brasil, Argentina, Chile, Bolívia e no Peru tentaram e fracassaram no emprego dessa estratégia. Nessas tentativas anteriores, sempre caíram na armadilha do descalabro fiscal. A mesma estratégia está sendo aplicada desesperadamente hoje pelos governos populistas da Venezuela e da Argentina, tentando agradar seus eleitorados com estímulos ao consumo enquanto se esforçam para conter a inflação com controles de preços. As principais repúblicas da América Latina se dividem em duas tendências diferentes: as populistas (Venezuela, Argentina, Bolívia e Equador) e as repúblicas cautelosas (Chile, Peru, Colômbia e México), que passaram por transtornos no passado e agora produzem crescimento estável, baixa inflação e investimento robusto. Por um tempo o Brasil ficou em cima do muro, mas, recentemente, parece se inclinar para o campo populista. Enquanto o Brasil segue por esse caminho, os episódios de crescimento são breves e efêmeros, com riscos de erosão dos ganhos sociais e econômicos da última geração, resultado de limitações em capacidade produtiva com a ameaça do ressurgimento da inflação crônica. A inflação crônica é uma cultura de comportamento que gradualmente gera a escalada dos preços e pressões sobre recursos públicos que os governos não querem ou não podem conter. Uma vez que a taxa atinge certo patamar e se mantém durante anos, a inflação crônica tende a se tornar politicamente muito difícil para contornar. Em seu livro, Chronic Inflation in Latin America (1972), Felipe Pazos estimou esse patamar de inflação anual para 10%, que ainda hoje parece razoável e do qual o Brasil pode estar se aproximando nos próximos anos. Uma inflação de 10% ao ano significa que o nível geral dos preços dobraria a cada sete anos. Com a inflação atual no Brasil, de cerca de 6% ao ano, o nível de preços dobraria a cada doze anos. Além disso, seria incompatível com os níveis de preços dos principais parceiros comerciais do Brasil, o que criaria distorções, com a inflação nos Estados Unidos e na zona do euro em apenas 1% e na China em 3%. Os custos do trabalho no Brasil aumentam rapidamente, pressionados pela escassez de gente qualificada, enquanto esses custos estancaram ou caíram nos Estados Unidos, Europa e Japão. Nos doze meses encerrados em maio de 2013, os preços de 230 dos 365 itens que compõem o principal índice de inflação subiram mais de 10%. “A inflação está em alta”, advertiu Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central. “Há um aumento generalizado de preços. Os reajustes no setor de serviços, como educação, saúde e comércio, mantêm-se acima de 8% ao ano. É um quadro grave. Se removêssemos os efeitos das reduções de impostos da eletricidade, dos automóveis e dos eletrodomésticos, além de eliminarmos o subsídio ao preço da gasolina, a inflação estaria rodando muito acima do teto de 6,5% da meta oficial”. O nivel geral dos preços aumentou em 40% desde 2008. Os governos brasileiros fizeram uma escolha histórica, privilegiando o crescimento do consumo acima do desenvolvimento das capacidades da população. O rápido crescimento do consumo se tornou um direito adquirido, uma vaca sagrada e uma força política poderosa que não é questionada ou desafiada por nenhum ator político relevante. Os shopping centers se tornaram catedrais catalisadoras do boom imobiliário, 495 deles construídos em cidades grandes e médias, desde o Rio Grande do Sul até a Amazônia. Ultimamente o boom das compras encolheu devido a maiores preocupações sobre as dívidas dos consumidores e sobre o futuro duvidoso. O investimento público é baixo porque 86% da grande elevação dos gastos do governo desde 1999 (excluindo os juros da dívida pública) vieram das transferências de renda. O brasileiro médio se aposenta com 54 anos de idade e recebe o equivalente a 70% de seu último salário, o que custa ao governo 11% do PIB, mais do que em países ricos como a Alemanha e o Japão, que têm uma proporção de idosos três vezes maior do que o Brasil. O programa Bolsa Família absorve só 0,5% do PIB, com pequenos pagamentos em dinheiro para famílias pobres, em troca da obrigação de que elas mantenham seus filhos na escola e os vacinem, mas que nos últimos anos ficou distorcido por clientelismo político e corrupção. Apesar de sua incapacidade para completar os investimentos públicos, os governos federal, estaduais e municipais são eficientes em distribuir salários, pensões e outros benefícios. Pagamentos de aposentadorias e pensões beneficiam cerca de 50 milhões de pessoas, absorvendo 60% do orçamento federal. Governos tendem a ser cada vez mais generosos, sem exigir nada ou quase nada em troca. Milhares de municípios sobrevivem por meio de transferências federais, praticamente não coletam impostos e não produzem quase nada além de votos. Impostos sobre a propriedade têm um peso reduzido nas finanças públicas. Eles representam apenas 1,7% de toda a receita tributária, bem menos do que os 10% nos países desenvolvidos, com a receita praticamente zerada nos municípios pobres com estruturas administrativas precárias, dominadas por oligarquias comerciais e latifundiárias. Em 1983, no ano da maxidesvalorização de Delfim Netto, o Banco Mundial observou que o volume de transferência de renda “é algo tão próprio da economia brasileira que a economia do país pode ser chamada de economia de transferência, em oposição à economia de mercado ou à economia de planejamento central”. A inflação crônica pode ser descrita como a institucionalização de transferências econômicas desastradas. O perigo não deve ser descartado facilmente, dizendo que a inflação crônica pertence ao nosso passado e que os ganhos sociais e institucionais das últimas décadas são irreversíveis. Na realidade, o passado está sendo reavivado pela expansão do crédito e pela manipulação enganosa das finanças públicas, gerando uma falsa sensação de segurança em um ambiente de baixa produtividade, altos custos e desorganização da atividade econômica. O governo manobrou para disfarçar os aumentos dos custos, na tentativa de conter os preços de eletricidade e petróleo no varejo, enquanto expandiu o crédito ao consumidor e baixou os impostos sobre os eletrodomésticos e automóveis para estimular o consumo. Depois de muitos anos de baixo nível de poupança e investimento, o Brasil reduziu seu potencial de crescimento econômico sustentável. Devido ao baixo nível de investimentos, disse Olivier Blanchard, economista-chefe do FMI, “o espaço de manobra para políticas de estímulo da demanda é provavelmente limitado”. Mais tarde, o FMI estimou uma taxa de crescimento potencial de 3,5% ao ano, muito mais baixa do que a previsão anterior, embora mais elevada que nos anos recentes. O Banco Central fazia uma “intensificação do ritmo de ajuste das condições monetárias” no que o Financial Times chamou “o mais agressivo ciclo de aperto no mundo”, aumentando sua taxa básica de juros sete vezes em oito meses, para chegar aos 10,5% em janeiro de 2014. Três décadas antes, enquanto a inflação explodia, Thomas Sargent, um historiador da inflação agraciado com o prêmio Nobel de economia (2011), observou numa “Carta a mais um ministro brasileiro da Fazenda” (1987):
“Um banco central sozinho não consegue segurar a inflação contra o desejo de uma autoridade de política fiscal determinada a permitir persistentes déficits orçamentários. Na realidade, um banco central determinado a ‘agir sozinho’ e combater a inflação com uma política de restrição monetária consegue apenas ganhos temporários na batalha contra a inflação, e ao custo de fazer com que a inflação seja ainda mais alta no futuro”. Embora a carga tributária geral subisse de 21% para 39% do PIB desde 1987, hoje mais alta do que na maioria dos países mais ricos, a receita não acompanha os aumentos dos salários do governo, pensões e outras transferências de renda atreladas ao salário mínimo, que aumentou 115% em termos reais desde 1994, aplicando uma fórmula que garante ganhos superiores à inflação e ao crescimento econômico. O Brasil está abaixo do Peru, do México e do Chile no Índice do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, enquanto o Brasil arrecada cerca de duas vezes mais impostos que esses vizinhos em relação ao PIB. Por essa medida, o Brasil arrecada mais impostos do que a Grã-Bretanha, a Espanha ou os Estados Unidos, embora não mostre benefícios na forma de investimento público ou na qualidade dos serviços públicos. “O salário mínimo reajusta três quartos das aposentadorias e outros benefícios sociais e mais de 40% dos gastos do governo”, observou Mailson da Nóbrega, exinistro da Fazenda. “É um manicômio”. Governar o Brasil assim é muito caro. As dificuldades institucionais do Brasil aparecem nas finanças públicas, mas são retratadas com maior clareza nos problemas de infraestrutura e violência.
4. Infraestrutura
A economia mercantil-escravocrata do Brasil ficou perto da costa atlântica durante mais de três séculos, indiferente ao interior continental que produzia poucos bens exportáveis, excetuando a corrida de ouro em Minas Gerais no século XVIII. O censo de 1872 contava uma população conjunta de só 230.000 para as extensas províncias ocidentais de Goiás e Mato Grosso. Desde 1869, planos ambiciosos para desenvolver a infraestrutura continental foram anunciados a cada poucos anos, com poucos resultados. As mudanças começaram com o auge da borracha no final do século XIX e começo do século XX. Durante séculos, as comunicações internas fracas impediram a supressão de uma longa série de revoltas regionais que reduziram o poder e credibilidade do governo central, induzindo o geógrafo americano Preston James a observar em 1939: “Ainda no meio das proclamações patrióticas, fala-se audivelmente no Brasil sobre possível desintegração desse colosso para criar unidades menores e mais fracas”. Só na segunda metade do século XX, com a criação de Brasília e, principalmente após 1970, é que a agricultura moderna começou a penetrar essas regiões, fazendo do Brasil um grande exportador de grãos. O desenvolvimento das últimas décadas deixou o Brasil com um atraso grande nas infraestruturas de transporte e energia que as instituições públicas fracas se esforçam para superar. A grande tarefa para vencer esse atraso se complica por: 1) a escolha politica em dedicar maiores recursos para promover o consumo, negligenciando as necessidades do investimento público; 2) a falta de habilidade técnica, oriunda das fraquezas no ensino público, gerando deficiências no preparo e execução dos projetos; 3) confusão burocrática e politicagem na seleção e aprovação dos projetos. “O governo se divide em silos de modo geral estanques, com um claro déficit de coordenação”, segundo Cláudio Frischtak, um veterano analista dos problemas da infraestrutura. “Compete-se abertamente pela primazia da condução do processo, numa sucessão de ‘czares’ da vez; e o exercício do poder é basicamente pela pressão por resultados, no prazo mais curto possível, atropelando a formulação de modelos mais bem desenhados, projetos mais bem elaborados e soluções sustentáveis”. O Fórum Econômico Mundial coloca a infraestrutura no Brasil, em termos de tamanho e qualidade, em 114o lugar numa lista de 148 países. De acordo com o MGI, o valor da infraestrutura no país caiu para apenas 16% do PIB, em comparação a uma média global de 70%. Enquanto o restante do mundo investe 3,8% por ano do PIB global nas últimas décadas em estradas, portos, aeroportos, saneamento e telecomunicações, o Brasil gasta apenas 1,6% do PIB em infraestrutura, uma pequena parcela da pesada carga tributária (39% do PIB) e bem menos do que os níveis dos países latino-americanos. Na melhor das hipóteses, esse nível apenas compensa parte da depreciação. A demanda por melhor infraestrutura se intensificou com o crescimento das exportações agrícolas, do tráfego aéreo, das vendas de carros e do fluxo de contêineres nos portos, todos pelo menos dobraram na última década. Com 22 cidades cada uma com mais de um milhão de pessoas, a urbanização brasileira aumenta a demanda para mais investimento público. No entanto, porque muitos projetos de infraestrutura não são concluídos apesar dos altos custos, o investimento público, assim, vira mais uma forma de consumo privado. Esses fracassos, amplamente relatados pela imprensa, são tratados com indiferença entre políticos e o público em geral. Nas três décadas desde a eclosão da crise das dívidas externas da América Latina em 1982, o Brasil pôde realizar poucas obras de infraestrutura, com exceção da sustentação de suas cidades crescentes, produzindo uma atrofia do capital humano nas agências de governo responsáveis pelos investimentos públicos. No entanto, enquanto o Brasil se estabilizou e ganhou a confiança dos mercados financeiros internacionais, os governos anunciaram uma pauta grande de projetos – estradas, ferrovias, hidroelétricas, portos, aeroportos, exploração e desenvolvimento de grandes jazidas de petróleo em águas profundas do mar. Assim as habilidades humanas escassas disponíveis nas burocracias e nas construtoras privadas ficaram sobrecarregadas. A burocracia federal superlotada, com 22.000 cargos de confiança em 39 ministérios, não esconde essas dificuldades. Devido ao declínio na realização de obras públicas em décadas recentes, o Brasil não pôde criar uma nova geração de engenheiros para substituir lideranças como Mário Behring e John Cotrim, responsáveis pelas grandes hidroelétricas de Itaipú e Tucuruí. O GEIPOT (Grupo Executivo de Integração da Politica de Transportes), a equipe elite de técnicos criada pelo regime militar em 1969, desintegrou até ser abolida em 2008. As firmas de engenharia de projetos desapareceram. As grandes construtoras, como Andrade Gutierrez e Odebrecht, dependiam cada vez mais de obras realizadas fora do Brasil. Recentemente o Brasil se esforçou para leiloar obras, como parcerias públicas-privadas (PPPs), em meio a um labirinto de restrições, definições de preços, subsídios cruzados, litígios e indefinições sobre decisões futuras do governo. Houve muito barulho em relação aos programas para estradas, de R$ 54 bilhões; portos, de R$ 16 bilhões; e ferrovias, de R$ 98 bilhões. A elaboração do projeto e os editais de leilões foram terceirizados, a cargo de uma empresa particular, a EBP (Estruturadora Brasileira de Projetos), o que gerou queixas de potenciais participantes de PPPs em relação ao irrealismo de subestimar a necessidade de investimentos, oferecer taxas antieconômicas nas tarifas e exagerar em projetar as taxas de retorno. Até recentemente o governo oferecia taxas de retorno parecidas às da dívida do Tesouro, que rendem juros sem risco e sem o esforço complexo de realizar obras de infraestrutura. O ministro dos Transportes, César Borges, anunciou que o governo iria subsidiar os pedágios nas grandes estradas, onde as concessionárias também obteriam empréstimos a juros baixos no BNDES. Os benefícios potenciais das PPPs frequentemente são exagerados, até nos países onde alguns projetos tiveram sucesso. Só 40% das PPPs planejadas nos Estados Unidos desde 1985 conseguiram financiamento até 2010. Na União Europeia, as PPPs absorveram menos de 12% dos investimentos na infraestrutura em anos recentes. No Brasil, das 177 PPPs anunciadas na última década, só 19 tiveram contratos assinados e só 11 estavam operando. Esses incluíram as estradas principais do Estado de São Paulo, operados com sucesso como PPPs. Agora esses programas poderiam ser testados numa escala muito maior. Alguns exemplos: • Esses desafios se concretizaram na estrada estratégica BR-163, o roteiro para exportação para a safra de grãos de Mato Grosso ao porto de Santarém no Rio Amazonas e aos portos do Sul. Há décadas se repete o ritual visto nos jornais e na TV que dramatiza essas dificuldades. A cada ano, testemunhamos o mesmo espetáculo de caminhões carregando produtos agrícolas atolados na lama ao longo dos mil quilômetros da BR-163. O Brasil transporta 60% de sua produção interna por estradas, das quais apenas 14% são pavimentadas. “No agrobusiness brasileiro, a principal dificuldade não é a produção, mas o transporte”, de acordo com Marcos Jank, um influente economista agrícola e membro do nosso Instituto. “E essa precariedade impacta o agrobusiness mais do que qualquer outro setor da economia”. Longos trechos da BR-163 foram leiloados a construtoras que se esforçarão para vencer adversidades do meio ambiente – meses de chuvas pesadas sem parar, solos encharcados, construção de pontes cruzando dezenas de rios, falta de materiais de pavimento nas proximidades, necessidade contínua de manutenção intensiva – para duplicar a BR-163 numa estrada de quatro pistas, lucrando com os pedágios gerados por milhares de caminhões carregados de grãos, todos os dias. Na outra ponta desse corredor logístico de 3.500 quilômetros, que liga as fazendas aos mercados no exterior, longas filas de caminhões aguardam para descarregar no porto de Santos, o maior da América Latina, enquanto muitos navios esperam vários dias para atracar. Atrasos no embarque de mercadorias levaram ao cancelamento de encomendas chinesas de dois milhões de toneladas de soja em 2013. Agora a BR-163 engrossa a fila de vários projetos de rodovias leiloados no final de 2013 para empreiteiros privados, apoiados por bancos estatais e fundos de pensão das empresas estatais, após oferecer grandes descontos nos pedágios autorizados, com esperança de lucrar com o grande volume de caminhões transitando essas rotas. • Um dos grandes projetos é a transposição do rio São Francisco através de 622 quilômetros de canais, para levar água a 12 milhões de pessoas de 391 municípios do Nordeste, inclusive Fortaleza, cuja população aumentou rapidamente em meio século, passando de 200 mil para 2,5 milhões. A construção começou a partir de um estudo de viabilidade que não levou em conta pesquisas geológicas detalhadas do terreno. Embora o projeto tenha ficado pronto antes da eleição presidencial de 2010, apenas 40% do trabalho foi concluído até agora, e a estimativa de custo dobrou. Muitos dos canais racharam e foram invadidos pelo mato depois que construtores abandonaram suas seções quando souberam que o terreno a ser trabalhado ainda não havia sido desapropriado e havia torres de eletricidade no meio do caminho. • O mesmo tipo de problema paralisou três grandes projetos ferroviários, cada um com mais de mil quilômetros, que estão sendo tocados simultaneamente: a Transnordestina, a Norte-Sul e a Leste-Oeste, que cruza a Bahia como um corredor de exportação para Barreiras, uma nova área do cerrado produtora de soja e algodão. O ex-presidente da Valec, a estatal responsável pelo planejamento e construção da ferrovia, foi preso acusado de dar um desfalque de R$ 100 milhões na Norte-Sul, de 2.255 quilômetros, que está em construção desde 1996. A Valec também está construindo a ferrovia da Bahia, cujas obras foram suspensas por problemas nos estudos de engenharia e ambientais, impasses legais e regulatórios, ameaças de morte a técnicos feitas por fazendeiros e posseiros. Três anos depois do anúncio do começo da construção nenhum trilho foi colocado e metade dos empreiteiros abandonou o trabalho. Cometa A saga de Eike Batista foi celebrada na imprensa internacional, ascendendo e depois queimando como um cometa, formando uma espécie de atalho para o entusiasmo e logo decepção frente os problemas do Brasil no financiamento e execução dos grandes projetos. Eike ganhou sua primeira fortuna aos 21 anos, no comércio de ouro nos garimpos da Amazônia na década de 80. Meses antes da crise financeira de 2008, o seu grupo de empresas de energia, infraestrutura e mineração, ganhou valor de mercado de R$ 87 bilhões (US$ 54 bilhões) graças a uma série de ofertas públicas de ações, orquestradas com uma enxurrada de 105 anúncios de “fatos relevantes” ao mercado, proclamando sobre a descoberta de óleo na Bacia de Campos: “A OGX prova que vale apostar na competência dos brasileiros e na abundância de nossos recursos naturais. Viva Brasil!” Proclamando sua meta para virar o homem mais rico do mundo, ele reuniu um “dream team” trazendo executivos e geólogos da Petrobras que comemoravam grandes descobertas, queimando US$ 5,3 bilhões antes de anunciar em 2013 que o programa de exploração fracassou. Após sua holding EBX haver investido US$ 15,7 bilhões em 2011-12, apoiado por US$ 5 bilhões em créditos do BNDES e com BNDESPar como grande acionista, o Wall Street Journal informou que “dúvidas cresceram sobre a capacidade do Sr. Batista em realizar suas altas metas para terminar seus maciços projetos de infraestrutura”, gerando problemas de reputação para o Brasil. Eike cedeu ações em suas empresas como garantia aos empréstimos levantados para construir plataformas e desenvolver poços no mar e minas de ferro. Com dívidas somando R$ 18 bilhões (US$ 9 bilhões), Eike anunciou que a OGX suspenderá as operações nos campos do mar em 2014, alguns deles três meses após serem declarados comercialmente viáveis aos reguladores. Analistas no Bank of America informaram que, além dos empréstimos do BNDES, o grupo obteve créditos somando R$ 1,4 bilhões da Caixa Econômica Federal e outros R$ 3,1 bilhões de Bradesco, Itaú Unibanco e BTG Pactual. Credores estrangeiros exigiram em vão pagamento imediato de US$ 3,6 bilhões em bônus. Surgiram questões de como os grandes bancos e a agência reguladora da indústria de petróleo e da Comissão de Valores Mobiliários Zodiam haver suspendido seu senso crítico, expondo muitos investidores a grandes perdas. Em seguida, a OGX entrou nos tribunais para pedir proteção de seus credores. No maior calote corporativo na história da América Latina, os credores concordaram em trocar US$ 5,8 bilhões em dívidas para 90% das ações da OGX. Os 81.000 investidores de varejo assistiram o colapso no valor de cada ação de um pico de R$ 23,27 em 2010 para R$ 0,24 em dezembro de 2013. Eike perdeu US$ 30 bilhões no que foi atribuído como sua riqueza pessoal. Infelizmente, o colapso do império de Eike coincidiu com protestos sobre os desperdícios no gasto público para infraestrutura nos preparos para a Copa do Mundo de 2014. 5. A Copa do Mundo de 2014 Os preparativos confusos para a Copa do Mundo no Brasil provocam controvérsias crescentes. A ausência de competição de outros países ficou evidente quando Lula, em outubro de 2007, liderou a ida de um grupo a Zurique, que incluía 12 governadores de estados para receber o mandato da Fifa (Federação Internacional de Futebol) para o Brasil, país pentacampeão, sediar a Copa do Mundo a ser realizada em junho e julho de 2014. Como se essa honra não fosse suficiente, o Brasil foi premiado também para realizar os Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro. Não houve competição para sediar a Copa, já que era a vez de um país sul-americano e o Brasil era considerado desde 2003 o único candidato plausível. “O modelo proposto para a Copa no Brasil prevê investimento privado para a construção e renovação de estádios, reservando-se o dinheiro público à modernização da infraestrutura”, anunciou Ricardo Teixeira, que por um longo período (1989-2012) presidiu a CBF (Confederação Brasileira de Futebol). Em 2012 Teixeira renunciou ao cargo de presidente da CBF e do comitê organizador da Copa o Mundo. De acordo com um promotor suíço, Teixeira e seu ex-sogro, João Havelange, que presidiu a Fifa entre 1974 e 1998, embolsaram US$ 41 milhões em propinas com a venda de direitos de marketing das Copas. Enquanto isso, projetos urbanos de infraestrutura, que beneficiariam os moradores das cidades depois da Copa, foram abandonados. Os preparativos da Copa se resumiram simplesmente a uma corrida para a construção de estádios, financiada com recursos públicos, e com atrasos nos cronogramas. Jérôme Valcke, secretário-geral da Fifa, disse a jornalistas em 2012: “Não entendo por que as coisas não estão avançando. Os estádios estão atrasados. A reocupação é que nada está sendo feito para receber tantos visitantes. Lamento dizer que as coisas não estão funcionando no Brasil. Vocês precisam de mais pressão, precisam levar um chute no traseiro para organizar a Copa”. Valcke falou depois que a Fifa considerou transferir a Copa para outro país durante os protestos de rua em vários cidades brasileiras em junho de 2013. Enquanto outros países, em outros anos, que se candidataram para sediar a Copa do Mundo tinham previamente submetido à Fifa propostas detalhadas para construir e melhorar estádios, infraestrutura urbana, segurança pública, aeroportos e hotéis, ao Brasil nada foi exigido, uma vez que era o único candidato. Em 2009, o Brasil ainda não havia escolhido as cidades onde os jogos seriam realizados e deixou a decisão a cargo da Fifa, ou seja, a Ricardo Teixeira. Sob pressão política para acomodar interesses locais, Teixeira decidiu que as partidas seriam realizadas em 12 cidades, algumas das quais distantes milhares de quilômetros entre si, em vez das tradicionais oito cidades das Copas anteriores. Estima-se que a Copa no Brasil custe R$ 28 bilhões (US$ 14 bilhões), quatro vezes mais do que a Copa na África do Sul (2010) e quase três vezes mais do que a da Alemanha (2006), ambos com populações e territórios menores. Uma corrida começou para construir grandes estádios em locais improváveis, com poucos torcedores, como em Cuiabá, Manaus e Brasília, cidades que não têm times nem na segunda divisão. Em Brasília, a capacidade do Estádio Nacional Mané Garrincha foi ampliada de 45 mil para 72 mil pessoas, ao custo de US$750 milhões, em uma cidade onde as partidas de futebol com times locais atraem, na média, 800 espectadores. “O novo estádio em Manaus tem 48 mil cadeiras, mais do que o público total de todas as partidas na temporada das quinze equipes locais”, disse Juca Kfouri, um dos principais comentaristas de futebol. “Além dos elefantes brancos em Cuiabá, Brasília, Manaus e Natal, está sendo construída uma nova arena no Recife, a 40 quilômetros do centro da cidade, numa área de difícil acesso. Todos esses estádios para abrigar no máximo três jogos, em um mês de Copa, e depois eles terão pouco uso”. No entanto, manifestações espontâneas de rua contra a qualidade dos serviços públicos eclodiram em junho de 2013, às vésperas da Copa das Confederações, uma competição preliminar entre as principais equipes que disputarão a Copa e que têm também o objetivo de testar se a infraestrutura e os estádios estão prontos. As manifestações cresceram a partir de um pequeno protesto contra o aumento de 20 centavos no preço da passagem de ônibus em São Paulo e que foi dispersado com violência pela polícia. Houve passeatas em 353 cidades, organizadas em redes sociais, como o Twitter e o Facebook, o que surpreendeu os promotores do movimento original em São Paulo e superou outras estimativas. Até então, a opinião consensual era a de que as coisas continuariam como estavam: que a inflação anual ficaria em torno de 6% e que o governo sobreviveria à deterioração econômica e se reelegeria em 2014 para só depois anunciar alguma política de estabilização. A presidente Dilma Rousseff tinha taxa de aprovação de 67% nas pesquisas, e estava tão confiante que declarou: “Meu mandato é para oito anos”. Mas a questão da qualidade de vida veio à tona com as manifestações de pessoas de diferentes classes sociais, noite após noite, nas ruas de grandes cidades e de remotos locais da Amazônia e do Nordeste, protestando contra o custo e a qualidade dos transportes, a corrupção endêmica, a precariedade da educação e da saúde pública, e os gastos extravagantes e caóticos com os preparativos da Copa do Mundo. Nessa época, a Controladoria Geral da União calculou que a construção e a reforma de estádios no “padrão Fifa” custariam R$ 7 bilhões, quantia suficiente para a construção de 8.000 escolas. Os manifestantes então exigiram escolas, hospitais e transporte urbano “padrão Fifa”. À medida que multidões tomavam as ruas, os políticos entraram em pânico, e depois tomaram iniciativas delirantes, como a do Congresso, que manteve sessões noite adentro para aprovar de uma hora para outra reformas esquecidas havia muito tempo, enquanto políticos elogiavam a sabedoria das massas. Em seguida, o apoio a Dilma caiu para 27% nas pesquisas de opinião nas semanas seguintes. Ainda assim, as manifestações continuaram semana após semana, com sindicatos e associações profissionais convocando passeatas e bloqueando o tráfego nas maiores cidades. As manifestações deram visibilidade a grupos que se consideram anarquistas e que vandalizaram agências bancárias, lanchonetes MacDonald’s e prédios de governo. O mais notório desses grupos, os Black Blocs, foram às ruas com máscaras e protagonizaram cenas de violência que, mostradas na TV, afastaram a classe média das manifestações. Os protestos perderam o foco e não conseguiram impor uma agenda e uma organização capazes de influenciar a qualidade de vida pública, enquanto políticos voltavam às suas rotinas. Em 30 de junho, o Brasil venceu a Copa das Confederações com uma vitória de 3 a 0 contra a Espanha, a campeã da Copa do Mundo de 2010. Aos poucos, Dilma se recuperou nas pesquisas. O marqueteiro de Dilma, João Santana, havia caracterizado os protestos como “uma catarse temporária”.
6. Violência
Naquela tarde de domingo, quando a jovem seleção brasileira derrotou a Espanha na Copa das Confederações diante de 74 mil torcedores que compraram ingressos caros no remodelado Maracanã, no Rio de Janeiro, outra partida de futebol estava sendo disputada 2 mil quilômetros ao norte, num campo improvisado de Campo de Melo, no município de Pio XII, Maranhão. Nessas regiões, jogos de várzea são uma das poucas recreações nas tardes de domingo, frequentemente animadas por bebida alcoólica e violência. Pio XII é uma das regiões mais pobres de um dos estados mais atrasados do Brasil, com um nível de analfabetismo de 44%, em comparação com 28% em todo o Maranhão e 13% no Brasil, enquanto a mortalidade infantil em Pio XII chega a 72 por mil, a mesma taxa do Congo, em comparação a 54 no Maranhão e 13 no Brasil. A pobreza em Pio XII foi aliviada pelo Bolsa Família, que paga mensalmente, na média, R$ 166 para 44% das famílias. No futebol improvisado de Campo de Melo, um time usava camisa e o outro não, e as traves não tinham redes. Otávio Cantanhede, 19, tocava o gado e consertava cercas durante o dia e estava estudando à noite para realizar o seu sonho de se tornar contador. Naquele domingo, ele escondeu uma faca sob o calção antes de montar em sua bicicleta para ir até o campo onde ele jogava na defesa até machucar um pé e se tornar juiz. Cerca de 15 minutos depois de iniciado o segundo tempo, Otávio apitou e mostrou o cartão amarelo para Josemir Santos Abreu, 30, um ex-colega de equipe que trabalhava na agência local dos Correios e que estava assistindo ao jogo até ser convidado a participar. Jogador agressivo de meio campo, apesar de sofrer de epilepsia, Josemir não gostou da decisão do juiz e o desafiou a dar o cartão vermelho, dizendo que ambos deixariam juntos o campo. Otávio chamou Josemir de palhaço e o expulsou. Josemir xingou a mãe do juiz e o derrubou com um chute. Quando Otávio levantou ele tinha a faca nas mãos e golpeou Josemir duas vezes do lado do corpo e uma vez no peito. Josemir morreu a caminho do hospital local enquanto seus amigos atacaram Otávio. Amarraram-no, quebraram uma garrafa de cachaça em sua cabeça, o atropelaram com uma moto e o decapitaram depois de esfaquear seu pescoço. Sua cabeça foi espetada num poste perto do campo. Vizinhos disseram ter telefonado para a polícia, mas não obtiveram resposta. Pio XII tinha sete policiais, que usavam dois carros. Naquela tarde de domingo, os policiais estavam trabalhando em outra vila, onde não havia sinal de celular e não puderam atender as ligações feitas a partir do campo de futebol em Campo de Melo. O número de homicídios no Maranhão multiplicou cinco vezes na última década. Na penitenciária de Pedrinhas em São Luiz, 60 prisioneiros foram assassinados durante 2013 em brigas entre gangues de internos, três deles decapitados em dezembro. Esposas visitando a prisão repetidamente sofreram estupros coletivos por vários prisioneiros. Em muitas regiões do Brasil, o padrão de vida melhorou, mas a violência continua, refletindo problemas institucionais que a população aceita passivamente. Nos últimos anos, o Brasil registrou um recorde de mais de 52.280 homicídios por ano, média de 143 assassinatos por dia, o equivalente a um grande desastre aéreo a cada dia. Muitos dos assassinatos são repentinos e espontâneos, como em Campo de Melo. Entre 1980 e 2011, mais de 2,6 milhões de brasileiros tiveram mortes violentas, sobretudo de homicídios e acidentes. Enquanto os assassinatos de Otávio Cantanhede e Josemir Abreu em Campo de Melo foram praticados com armas primitivas, a maioria dos homicídios no Brasil envolve armas de fogo. Estima-se que haja 15 milhões de armas no Brasil, menos da metade delas com registro. O número de assassinatos com armas de fogo no Brasil multiplicou por seis desde 1980, hoje representando 70% de todos os homicídios. Mesmo sem insurgências organizadas nem conflitos étnicos ou religiosos, o Brasil registrou 147.373 brasileiros mortos com armas de fogo entre 2004 e 2007, número muito superior ao total de vítimas fatais dos conflitos armados no Iraque, Sudão, Afeganistão, Colômbia e Congo, de acordo com o relatório Global Burden of Armed Violence, publicado em Genebra numa iniciativa diplomática apoiada por 100 países e patrocinada pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD). O Brasil está em sétimo lugar na liga mundial de homicídios, com 27,4 assassinatos por cada 100 mil habitantes, atrás de El Salvador (62,4), Venezuela (36,4), Colômbia (45) e Guatemala (38,7), entre os países com estatísticas disponíveis. A taxa de homicídios no Brasil é várias vezes maior à da população mundial, estimada por agências das Nações Unidas entre 6 e 8,8 por 100 mil. Catorze cidades brasileiras estão entre as 50 com maiores taxas de assassinatos do mundo, enquanto o México tem 12 cidades, a Colômbia tem cinco e a Venezuela, três. Metade dessas 50 cidades com maiores índices de assassinatos está na América Latina. A escalada de homicídios no Brasil não é homogênea. Enquanto os assassinatos em 2001-11 caíram 80% em São Paulo, 55% no Rio de Janeiro e 37% no Recife, eles dobraram em outras grandes cidades da Amazônia e do Nordeste. A astronômica taxa de Maceió, capital de Alagoas, é de 111 por 100 mil habitantes, dez vezes mais alta que a da cidade de São Paulo. Em um quinto dos 5.565 municípios, sobretudo nos menores, não houve registro de assassinatos entre 2009 e 2011. Mas em várias outras cidades, de diferentes tamanhos, as taxas de homicídios estão entre as mais elevadas do mundo. Quinze municípios brasileiros apresentam taxas superiores a 100 por 100 mil, e 88 cidades têm taxas de mais de 60 por 100 mil. Entre as comunidades mais violentas, 51 estão no Nordeste, metade delas em dois estados: Bahia e Alagoas. Uma extensa reportagem de Leonêncio Nossa no jornal O Estado de S. Paulo identificou 1.133 assassinatos políticos desde 1979, dois terços deles no Nordeste e na Amazônia, com um número crescente nos últimos anos e picos registrados durante as campanhas eleitorais nos municípios. A onda de violência provoca algumas reflexões. Por que os homicídios crescem enquanto os padrões de vida melhoram, com uma taxa de desemprego historicamente baixa (4,6% em termos nacionais) e com grandes transferências de renda para os mais pobres? Por que a ocorrência de homicídios é tão heterogênea, com algumas cidades reduzindo drasticamente o número de assassinatos, enquanto em outras os assassinatos multiplicam sem controle? Tais diferenças refletem a estrutura dos incentivos? É porque menos de 10% são esclarecidos pelas polícias e processados na Justiça? Podemos explicar os homicídios com referência ao potencial humano não realizado, com 23% dos jovens entre 18 e 24 anos de idade que não estudam nem trabalham? Como podemos relacionar a frequência dos homicídios aos padrões de assentamento e a presença ou ausência das instituições públicas nessas cidades que crescem rapidamente? Será que isso pode ser explicado pelo tráfico de drogas? Todas essas questões merecem ser abordadas a partir de pesquisas detalhadas. Eu acredito, porém, que o fator comum é a qualidade das instituições. A onda de homicídios no Brasil está na contracorrente da tendência de longo prazo, que nos últimos séculos tem sido a redução da violência civil em sociedades complexas. Nos últimos 800 anos, assassinatos na Europa Ocidental, por exemplo, caíram de uma taxa de 80 a 100 por 100 mil pessoas – maiores do que a taxa atual de El Salvador e da Venezuela – para níveis civilizados de 1 por 100 mil. A explicação para esse declínio secular na violência civil segue a tradição intelectual que teve início com o filosofo Thomas Hobbes que sustentou em sua grande obra Leviatã, escrita durante as guerras civis inglesas do século XVII, que só um Estado que monopoliza o emprego da força, com consentimento do povo, pode evitar a anarquia. Hobbes chamou essa anarquia de “a guerra de todos contra todos”, quando “os homens vivem sem um Poder comum para mantê-los em reverência pavorosa”, deixando-os em “medo permanente e perigo de morte violenta; e a vida do homem solitária, pobre, sórdida, bestial e curta”. A evolução da paz social foi fortalecida pelo comércio. “O comércio liga as pessoas através da utilidade mútua”, o economista Samuel Ricard escreveu em 1704. “Com o comércio, o homem aprende a deliberar, ser honesto, adquirir bons costumes, ser prudente no pensar e na ação”. A influência civilizadora do comércio foi reforçada pela difusão da leitura, avanços tecnológicos na impressão e editoração, na circulação maciça de jornais e livros, ampliando os horizontes dos conhecimentos comuns que conduzem às reformas humanitárias. Esse declínio da violência civil durante séculos fica explicado no livro recente, Os anjos bons da nossa natureza (Cia. das Letras, 2011), do psicólogo de Harvard Steven Pinker, relatando a evolução desde a época medieval na Europa do que foi chamado de o processo civilizador: A centralização do controle estatal e sua monopolização de violência, o crescimento das burocracias e dos grêmios dos comerciantes e artesãos, a substituição do escambo com dinheiro, o desenvolvimento da tecnologia, a evolução do comércio, a crescente teia de dependência entre os indivíduos distantes, todos se encaixam em um conjunto orgânico. E para prosperar dentro desse conjunto, a pessoa tinha que cultivar as faculdades de empatia e autocontrole, até que se tornou uma segunda natureza. Dessa perspectiva, a fraqueza das instituições públicas habilitou o espaço para a tolerância da violência em muitas comunidades brasileiras. O Estado jamais conseguiu o monopólio da força e violência organizada. A circulação livre de armas e a frouxa aplicação das leis às vezes produzem casos em que as polícias cometem assassinatos com impunidade e colaboram com gangues criminosas. No entanto, quando o Estado se mobiliza para reduzir os homicídios pode ter sucesso. Apesar de suas imperfeições, o aparelho de segurança pública de São Paulo conseguiu ganhos espetaculares em reduzir os homicídios em 80% na cidade em apenas uma década, mais rapidamente e numa escala muito maior que na campanha badalada de Nova York, que encurtou o número de homicídios em 82%, de 2.262 em 1990 para 417 em 2012, uma façanha que demorou duas décadas para realizar. Em São Paulo a ação das polícias era importante, porém formou parte de um processo civilizador mais amplo: expansão do comércio nas periferias, maiores investimentos nos serviços públicos, crescimento mais lento da população jovem, melhor adaptação das famílias migrantes à vida urbana, melhorias nos padrões de vida e nas oportunidades de emprego, e mais acesso à educação que, apesar de suas fraquezas, facilitou a leitura e a escrita e o uso dos computadores e da Internet. No entanto, a violência forma só um aspecto dos problemas institucionais que o Brasil enfrenta no ano emblemático de 2014.
7. O Brasil precisa de uma nova estratégia
Os problemas institucionais não são simples. São nódulos ou conjuntos de problemas que só poderiam ser superados com um foco estratégico sobre prioridades durante um tempo prolongado. Por isso, temos sustentado que o Brasil precisa de uma nova estratégia. O Brasil vive em dois mundos. O primeiro desses mundos é a economia balão de promessas infladas. No seu discurso de fim de 2013 na televisão, a presidente Dilma Rousseff anunciou: “Sinto alegria de poder tranquilizar vocês dizendo-lhes que entrem em 2014 com a certeza de que o seu padrão de vida vai ser ainda melhor do que você tem hoje.” Minha Casa, Minha Vida “transformou-se no mais exitoso programa desse gênero no mundo.” “Reforçamos o programa Brasil sem Miséria e estamos a um passo de acabar com a pobreza absoluta em todo o território nacional.” Com a importação de médicos cubanos no programa Mais Médicos, “hoje já temos 6.658 novos médicos em 2.177 cidades beneficiando cerca de 23 milhões de pessoas. Em março, serão 13 mil médicos e mais de 45 milhões de brasileiros e brasileiras beneficiados”. Tudo isso faz parte da campanha para reeleição da presidente, inspirando Dilma para uma advertência à oposição que “se alguns setores, seja porque motivo for, instilarem desconfiança, especialmente desconfiança injustificada, isso é muito ruim. A guerra psicológica pode inibir investimentos e retardar iniciativas”. O outro Brasil está afundando na desordem institucional. Essa desordem incorpora o parasitismo fiscal, a corrupção endêmica, a inflação crônica, fracasso na infraestrutura e nos serviços públicos, escalada da violência e numa classe política autossuficiente e irresponsável, entrincheirada no sistema de “presidencialismo de coalizão”. Fora da classe política, a desconfiança cresce, esvaziando o otimismo e a autoestima de muitos brasileiros. Não há oposição política efetiva. As promessas e benefícios de curta duração, apoiados pelos recursos financeiros e a máquina de propaganda do governo, poderia até ganhar uma eleição, mas a desordem institucional tenderá a aprofundar. Diferente do passado recente, o Brasil não se beneficiaria nem de uma economia mundial vigorosa, nem de um sistema financeiro global em expansão. Olhamos para a Argentina e a Venezuela, nações ricas em recursos naturais oferecendo oportunidades desperdiçadas pelo populismo, com populações investidas com um senso forte de privilégio e com sua política dominada por fantasmas dos Grandes Homens: Juan Domingo Perón na Argentina e Hugo Chávez na Venezuela, assim como a política brasileira era influenciada durante décadas por Getúlio Vargas e poderia ser condicionada no futuro por memórias de Lula. Segundo os analistas políticos, Lula comanda a fidelidade de 50% do eleitorado, enquanto o PT sozinho fica com só 17%. No entanto, se Lula cede às pressões para se candidatar de novo em 2014, aos 69 anos de idade, sua influência provavelmente seria limitada e transicional, enquanto os problemas brasileiros mais profundos aguardam solução. O Brasil precisa de um movimento cívico, que nasça fora da classe política, para abordar nossos problemas institucionais mais profundos. Um precursor desse tipo de movimento cívico pode ser os protestos que surgiram em todo o país em 2013 e poderiam repetir-se em 2014. Esse movimento cívico criaria oportunidades e desafios para uma nova geração de lideranças. Faltando propostas específicas, os temas dos protestos são claros: superação das falhas institucionais na vida pública, indo além do transporte urbano, dos serviços de saúde e hospitalares, e do ensino público. Esses protestos precisam superar sua fase espontânea e romântica, expulsando elementos violentos, para desenvolver novas capacidades para liderança, organização e comunicação. Uma nova geração de lideranças potenciais com essas habilidades já surgiu nas empresas, nas profissões liberais, no jornalismo, nas igrejas e nos movimentos sociais. Essas capacidades poderiam ser mobilizadas durante o ano emblemático de 2014. Os movimentos cívicos precisam de uma agenda positiva. Essa agenda deve abraçar o esforço para desenvolver capacidades da população. O Brasil precisa de uma estratégia nova para construir uma base de conhecimentos e uma estrutura de incentivos que daria sustentação ao seu progresso. A promoção do consumo se aproxima dos limites de seu potencial político e econômico e seria mais difícil de sustentar no futuro. Os outros problemas institucionais tenderiam a resolver-se caso a liderança política pudesse concentrar-se numa estratégia de longo prazo para desenvolver a educação pública e a infraestrutura. Na prática, esses dois esforços são inseparáveis. Só com a melhoria das habilidades da população poderíamos evitar, no futuro, os fracassos recentes nos projetos de infraestrutura. Nos níveis atuais nas capacidades para ler e calcular, os governos não conseguiriam desenhar projetos, formular editais para leilões e supervisionar os empreiteiros. Só com esforços coerentes de longo prazo, sustentado durante décadas com apoio popular, poderia o Brasil desenvolver o capital humano que fortaleceria o processo civilizador. A despeito do progresso isolado em alguns estados, como Ceará, Goiás e Espirito Santo, o ensino público em geral permanece num atoleiro. Há poucos padrões de desempenho para professores e alunos. Há escassez geral de professores de matemática e ciências em todo Brasil. Em muitas escolas, os alunos recebem apenas duas horas diárias de ensino nas salas de aula. Nas provas para 510 mil alunos com 15 anos de idade em 65 países do PISA (Programa Internacional de Avaliação dos Alunos) da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), dois terços dos brasileiros foram classificados “abaixo do básico” em matemática em 2012, um ganho quando comparados com os 75% classificados com baixo desempenho em 2003, enquanto só 1% atingiu o topo das categorias. A metade dos alunos brasileiros foi classificada abaixo do básico em leitura, melhorando dos 56% deficientes em 2003. Essas melhorias em desempenho foram “inteiramente” explicadas pelas melhorias nas condições Marcos Muller socioeconômicas em vez de algum avanço na qualidade do ensino, segundo a OCDE. As taxas de deserção e reprovação continuam altas. As frequentes repetições de ano significam que, na média, os alunos demoram 12 anos para completar as oito séries do ensino fundamental. É difícil operar uma sociedade complexa com as habilidades atuais da população para ler, escrever e fazer cálculos básicos. A única alternativa ao aprofundamento da desordem na sociedade seria uma estratégia do desenvolvimento humano que daria oportunidades às dezenas de milhões de brasileiros para aprender mais e fazer mais. Essas oportunidades não poderiam ser realizadas sem o fortalecimento da qualidade do ensino e da aprendizagem. Enquanto há muitos pronunciamentos para elevar o gasto público na educação ao nível extremadamente alto de 10% do PIB, empregando a renda de uma bonança petroleira que ainda não existe, há poucas explicações como esses recursos vultosos seriam empregados. Não há alternativa às melhorias na seleção, treinamento e recompensa dos professores, especialmente nas ciências e na matemática. O Instituto Fernand Braudel desenvolveu algumas ideias de como essas metas poderiam ser atingidas, após pesquisar desde o ano 2000 sobre os esforços para reforma do ensino no Brasil e nos Estados Unidos e também conduzir Círculos de Leitura nas escolas públicas da periferia de São Paulo e nos estados do Nordeste, lendo e dialogando sobre os clássicos da literatura mundial com milhares de jovens talentosos e ambiciosos. Vamos desenvolver essas ideias numa edição futura de Braudel Papers. Concentrando-se na educação e na infraestrutura como prioridades, o Brasil poderia conquistar a eficiência que nos capacitaria para gradativamente superar outros problemas institucionais como a violência, saúde pública, o judiciário e a devastação da Amazônia, além da praga da corrupção. No entanto, trabalhar para conquistar objetivos de longo prazo exige uma combinação de confiança e urgência. O Brasil precisa de uma estratégia nova que abrace incentivos e prioridades claras para atingir objetivos de longo prazo que expressam um consenso sobre onde queremos estar. Precisa haver confiança entre nós porque perseguir essas metas demanda tempo. Enquanto se desenvolvem os acontecimentos de 2014, a necessidade para uma estratégia nova pode se tornar mais evidente. O elemento crítico dessas contingências seria a qualidade das instituições. Como Fernand Braudel poderia observar se fosse vivo hoje, o desafio está mais na qualidade das estruturas que nas situações. Só as instituições fortes e adaptáveis poderiam vencer novas provas de resiliência. Leia o artigo de Rubens Ricupero ao final do texto.
O dilema de Dilma
*Por Rubens Ricupero
Dilma Rousseff parece vitima de um perigoso dilema. A fim de ganhar as eleições presidenciais, necessita manter pleno emprego, ganhos reais de salário e expansão do consumo. Nas atuais condições, o atingimento desses objetivos tem se mostrado incompatível com alto crescimento e baixa inflação. Ademais, tem agravado os déficits fiscais e a dependência em relação à poupança externa, tornando necessidade premente ajustar a economia. Se, por razões eleitorais, o ajuste for adiado, o governo corre o risco de uma “tempestade perfeita” antes mesmo das eleições. O adiamento tornará o ajuste mais penoso. Os próprios objetivos de emprego e renda, indispensáveis à vitória eleitoral, terão de ser sacrificados, justificando acusações de “estelionato eleitoral”. Mesmo o sucesso eleitoral não está isento de riscos. Pode-se discutir se o governo de Dilma é amistoso em relação ao mercado; não há nenhuma dúvida, no entanto, de que o mercado não é amistoso em relação a Dilma. Se ficar claro que ela vai vencer as eleições ou confirmada a vitória, existe uma inquietante possibilidade da repetição, embora de forma muito atenuada, do pânico de mercado que se seguiu ao triunfo de Lula em 2002. Foi necessária então uma grande dose de sabedoria política e a ajuda valiosa do Ministro da Fazenda Antonio Palocci e do Presidente do Banco Central Henrique Meireles para superar a fase de instabilidade e restaurar a confiança dos agentes econômicos. Esse foi talvez o melhor momento de Lula, a partir do qual ele passou a ser visto não meramente como um sindicalista de êxito na política, mas como verdadeiro estadista. Como se explica que o governo de Dilma Rousseff tenha chegado a este dilema? Na época de sua eleição em 2010, o Brasil crescia a 7,5% ao ano e, por algum tempo, houve a ilusão deque se tinha descoberto fórmula infalível para assegurar um progresso irreversível. O próprio esforço de com- bate aos flagelos gêmeos da pobreza e da desigualdade, dizia-se, poderia se converter no fator dinâmico para acelerar o crescimento. Pensou-se que um mercado de consumo de massa surgiria do generoso conjunto de programas sociais articulados em torno da Bolsa Família, com cerca de 50 milhões de pessoas beneficiadas, um quarto da população brasileira. Esse mercado, por sua vez, proporcionaria demanda em expansão capaz de gerar o investimento necessário para aumentar a produção e satisfazer o aumento da demanda. Entre 1999 e 2012, a assombrosa proporção de 84 por cento do aumento nas despesas não financeiras do governo central consistiu em transferências de renda às famílias sob a forma de seguro-desemprego, Bolsa Família, abono salarial, e uma multidão de outros programas sociais! Tais programas possibilitaram alcançar resultados significativos: aproximadamente 25 milhões de pessoas se viram retiradas da mais abjeta miséria e número equivalente conseguiu ultrapassar pobreza pouco melhor. Cada programa social teve naturalmente um preço. Os investimentos públicos em infraestrutura, já reduzidos pelas sucessivas crises desde os anos 1980s, encolheram ainda mais até menos de um terço do que tinham sido na década de 1970. O consumo das novas “classes médias” se expandiu a expensas da poupança; os ganhos no salário mínimo e aumentos salariais reais fizeram baixar a produtividade; o bem-estar ocasionado pela apreciação da moeda foi custeado pelo crescente déficit em conta corrente e pela desindustrialização. Apesar da queda do investimento público e da fraca inversão privada, a economia logrou crescer durante algum tempo graças à inclusão no mercado de trabalho de milhões de trabalhadores antes desempregados ou subempregados e à utilização da capacidade ociosa da indústria. Tal processo se encontra hoje esgotado desde que o país alcançou o pleno emprego e o fornecimento de mão de obra passou a ser notavelmente diminuído pelo declínio do crescimento demográfico. O aumento da produtividade se reduziu a perto de um por cento ao ano, em parte devido à enorme expansão do mercado de trabalho acompanhada de elevações dos salários acima da produtividade, em parte como resultado da baixa qualificação dos trabalhadores. O misto de políticas econômicas e sociais adotadas pelos governos nos anos recentes parece ter se tornado insustentável. Com o atual crescimento anêmico, logo deixará de existir espaço fiscal residual para expandir e talvez até mesmo conservar alguns dos benefícios sociais. Aproxima-se rapidamente a data inadiável de algumas difíceis escolhas. Desta vez as escolhas terão de tocar num nervo exposto: a tensão entre a imediata satisfação de aspirações sociopolíticas e constrangimentos econômicos intratáveis. Em alguns casos, políticas encaradas como conquistas irreversíveis pelo governo e seus aliados estarão no coração da controvérsia. Um exemplo é a fórmula introduzida por Lula para aumentar o salário mínimo acima da inflação e seu impacto nos gastos públicos, particularmente na previdência social. Outro é o da explosão aparentemente fora de controle nas despesas com o seguro-desemprego e o abono salarial. A partir de agora, o Brasil somente poderá crescer por meio de melhorias na produtividade total dos fatores através de educação de qualidade, avanços em saúde e pesquisa, bem como da atração de investimentos privados de dentro e fora do país para lidar com o enorme acúmulo de projetos atrasados de infraestrutura num valor de mais de um trilhão de dólares. O governo que emergir das eleições terá de por em execução um bem desenhado programa de ajuste para controlar a inflação, frear o abuso de recursos do Tesouro para refinanciar os bancos oficiais, liberalizar o regime de comércio e empreender reformas imprescindíveis na área tributária, dos mercados de trabalho e das instituições públicas. Será possível fazer isso com sistema político minado por graves disfunções, entre elas o clientelismo, a compra de apoio político com favores governamentais, a proliferação de partidos e a corrupção disseminada? Serão os brasileiros capazes dessas tarefas desafiadoras com os níveis predominantes de baixa qualidade educacional? Esse é o tema central do ensaio de Norman Gall nesta edição dos Braudel Papers. Sua análise nos proporciona comentários penetrantes sobre o papel das instituições, da educação e da renovação das lideranças no processo de superação do atual dilema brasileiro. Convém lembrar que o Brasil conseguiu atingir seu presente estágio de desenvolvimento com instituições políticas que não eram certamente melhores que as atuais e com um nível de analfabetismo que atingia 85 % da população no início do século 20. Dilema, define o dicionário, é toda situação na qual existem apenas duas alternativas igualmente desagradáveis. No passado, sobretudo nos últimos 25 anos, a sociedade brasileira demonstrou capacidade de fazer tais escolhas, ao lutar contra a hiperinflação, consolidar a democracia de massas e enfrentar com determinação o desafio da pobreza e da desigualdade. Seria demais esperar que o Brasil seja igualmente capaz de fazer as escolhas corretas no futuro imediato? Rubens Ricupero, presidente do Instituto Fernand Braudel e diretor da Faculdade de Economia da FAAP. Foi ministro da Fazenda e embaixador nos Estados Unidos.